Uma nação não é o dia que vive
aosFranco Nogueira sobre a nação, nos Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I Volume.
OPUS CITATUM
Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I VolumeFranco NogueiraEditorial Intervenção, 1979págs. XXVI – XXVIIUma nação, sobretudo quando bem antiga, não é o dia que vive: é o conjunto dos séculos passados, e a preparação constante para os séculos que hão-de vir. No decurso do seu itinerário, uma nação vai acumulando sabedoria, experiência colectiva, instintos quase secretos que se transmitem de geração em geração. Quando o seu passado é já longo, como no caso português, tornam-se patentes linhas de acção que, por repetidas sem desvio, se têm de haver como constantes. Por outro lado, no rodar do tempo, surgem muitos homens de talento e alguns de génio que, emergindo da colectividade, sabem reflectir os sentimentos desta e exprimir uma visão dessa colectividade na sua trajectória. Ao cabo de muitos séculos, não se afigura plausível que aquelas linhas de acção, sempre coincidentes, estejam erradas, ou que esses homens, actuando sempre da mesma maneira, se hajam enganado. Além do mais, umas e outras têm a seu favor um facto incontroverso: a nação subsistiu, sobreviveu, manteve-se, continuou. De modo que o simples bom senso e a prudência, além da modéstia, levam a atentar nas lições de homens que sabiam e valiam bem mais do que nós, os homens de hoje. Apenas os países muito novos, sem experiência vivida e sem sabedoria sedimentada, oscilam na visão que formam de si próprio: e podem mesmo ser submersos porque outras forças, se não conseguirem a tempo encontrar as suas coordenadas e desenvolver o seu instinto de conservação. pode acontecer que, por motivos geográficos, mesmo países antigos e grandes povos não estejam ainda seguros de uma visão de si próprios. Na Europa, é o caso típico da Alemanha: se a Ocidente, depois de muitas lutas, as suas fronteiras parecem definitivas, já a Oriente, através da grande planície de leste, não se apurou ainda onde acabam os germanos e começam os eslavos: neste facto, ao mesmo tempo simples e transcendente, têm origem as múltiplas partilhas da Polónia, que se vê compelida a viver ao sabor dos arranques de uns e de outros. Não é este, todavia, o caso de Portugal.
Salvo por rectificações mínimas, e uma vez expulso o mouro ao sul, o território na Europa tem sido o mesmo desde que firmada a nacionalidade. Mais de oito séculos decorreram. Situado entre a Espanha e o mar, que linhas de acção seguiu o povo português nesse espaço de tempo? Que visão tiveram os seus homens de talento ou de génio? Enquanto as Hespanhas estavam parceladas em reinos, o de Portugal não sentia temores, porque a sua área e recursos impunham o respeito dos demais. Quando os reis de Portugal pressentiram o início de um processo de unificação das Hespanhas, vieram os cuidados: e sobretudo a partir de D. Dinis, na consciência da nação penetrou a ideia que no mar se haveriam de buscar pontos de apoio, para ser possível resistir a pressões do centro peninsular. Surgiram o fascínio e o sortilégio do largo oceano, e dos seus mistérios, e das suas promessas. No fim da primeira dinastia era clara a luta entre a força absorvente de Castela e a vontade de sobrevivência de uma comunidade atlântica: o embate exprimia-se entre a invocação de princípios internacionais então vigentes, que levariam ao trono português um rei alheio, e uma soberania portuguesa, que para se manter haveria de os rejeitar. No plano político, o conflito foi resolvido em Lisboa, com o golpe de Estado de Álvaro Pais; no plano legal, nas Cortes de Coimbra, com o génio dialéctico de João das Regras; e em Aljubarrota com o génio guerreiro de Nuno Álvares. Embrenha-se depois a Nação na busca do além-mar: se muitos foram os grandes nautas e os grandes guerreiros, e se não escassearam os sábios, os letrados e os santos, pode dizer-se que o Infante, Albuquerque e D. João II foram os visionários da geopolítica de um império de apoio. Dois séculos mais tarde, nova crise. Repete-se o conflito: a rigorosa aplicação do princípio da sucessão ao trono, como a concebiam alguns, chocava-se com a salvaguarda da soberania nacional; e para muitos a primeira, que punha no trono português o rei espanhol, sobrepunha-se à segunda. Esses entendiam que a norma, apenas porque era havida na época como tendo curso internacional, deveria ser respeitada, ainda que subvertesse a soberania portuguesa; e não pareciam ver que essa norma era invocada, não por questão de princípio, mas para prosseguir interesses alheios. Na emergência, Febo Moniz não foi Álvaro Pais; faltou João das Regras; e o Prior do Crato não foi Nuno Álvares. Mas foi ainda em torno do fenómeno ultramarino que se restabeleceu a unidade nacional, e esta deu à nação as forças que bastaram para expulsar Castela. Depois, foram altos e baixos. Parece lícito afirmar que os tempos áureos coincidiram com maior atenção à empresa ultramarina; e os períodos depressivos correspondiam a uma fraqueza de política mole que levava a nação a misturar-se em problemas que não lhe respeitavam. Era o desvario de alguns que se impressionavam com o instante que passava.
Foi uma luta constante. De um lado, os homens seduzidos com os ditames alheios: tinham por sagrados os princípios, as leis, os ideais inventados por outros e por outras forças, e consideravam que obedecer-lhes era do interesse e do dever da nação. Outros homens, com uma visão só nacional, entendiam que aos interesses portugueses nenhuns outros se poderiam sobrepor, ainda que estes fossem apoiados na força, e que cumpria resistir-lhes até à exaustão, se necessário. Deste embate saíram sempre triunfantes os homens que representavam as forças nacionais. E esse embate assumiu nos tempos mais chegados expressões várias. A partir do século XVII, os grandes impérios sempre atacaram o ultramar português: cordiais na Europa, inimigos pelo Mundo. Daí as lutas com a Holanda, a França, a Inglaterra, ainda outros. Chegou-se a estar em paz na Europa e em guerra pelos oceanos. Sob a invocação de muitos princípios e ideais era conduzida a luta contra o império português: em nome do mar livre, do anti-esclavagismo, das esferas de influência, dos direitos de ocupação, da responsabilidade do homem branco, dos mandatos. E, na actualidade, em nome da autodeterminação dos povos. Em todos os casos, condenava-se Portugal, porque não acatava os ideais de outros, não seguia os princípios em voga formulados por outros, não cumpria as normas que outros impunham à comunidade das nações. Portugal era havido por obstáculo, por embaraço maior, por escolho a que se estendessem por toda a terra os benefícios da civilização e dos altos valores morais de que eram portadores e arautos os impérios que emergiam: para tais impérios nunca está bem constituída a sociedade internacional que encontram; porque, precisamente para se formarem e expandirem, têm de destruir o que está. E, sendo-lhes defeso invocar o seu imperialismo, socorrem-se de novas doutrinas e novas ideias, de que procuram convencer os outros. Essas forças imperiais actuam em nome de uma doutrina ou outra, servem-se de meios ou países interpostos, utilizam organismos internacionais que manipulam. Os impérios, e os organismos internacionais que lhes obedecem, procedem sempre como quem possui um mandato providencial: vão sempre libertar, ajudar, proteger os mais fracos, em nome de ideais alevantados de que consideram instrumentos inocentes, e até o fazem por generoso altruísmo e com sacrifício.
Nos nossos tempos têm andado a alastrar pelo Mundo os impérios, em nome da auto-determinação. Contra essas forças imperiais, sempre o povo português reagiu: o seu instinto de defesa e a consciência nacional dos seus interesses levaram-nos a apoiar dentro do país quantos se opunham aos que, por ingenuidade, ou por pusilanimidade, ou por subserviência económica ou ideológica, queriam transigir, ceder, e em suma fazer o que era do interesse de terceiros e não do interesse português. Sem embargo dos sobressaltos, todavia, a visão histórica de Portugal foi sempre esta: rejeição dos clamores da comunidade internacional, influenciada pelos impérios; defesa das posições além-mar, como apoio e para segurança do território europeu em face de Castela e como factor de negociação externa; sentido de missão ecuménica, de raiz cristã e de espírito universalista; representação e implantação de valores ocidentais; consciência do carácter efémero de modas e épocas, e da salvaguarda de interesses permanentes. Assim pensou a monarquia: nem a coroa nem os governos hesitaram jamais em defender o ultramar. Resistiram às injunções externas, fossem estas emanadas de conferências, congressos ou governos estrangeiros; e as campanhas de África tiveram o apoio colectivo do país. Não cuidaram de obedecer às ideologias em moda, mas de sustentar os direitos e interesses da Nação. Idêntica foi a orientação da I República: nesta, todos os vultos de marca consideraram o ultramar parte integrante de Portugal. Desde Afonso Costa a Brito Camacho, desde Norton de Matos a João Chagas, desde António José de Almeida a Cunha Leal — não há uma excepção. E daquela orientação não se desviou a II República: a manutenção do património ultramarino foi ponto fundamental do seu ideário político. Foi este o perfil que a Nação criou e que defendeu e transmitiu de geração em geração.
Até à III República.