Pires de Lima sobre o Brasil da 2.ª Grande Guerra
aosRelatório de Augusto Pires de Lima para Oliveira Salazar com observações do Brasil, em plena 2.ª Guerra Mundial.
OPUS CITATUM
Correspondência entre Mário de Figueiredo e Oliveira SalazarMário de FigueiredoPresidência do Conselho de Ministros / Comissão do livro negro sobre o regime fascista, 1986págs. 85 – 92Documento 8 - 28.5.1942
Ministério da Educação Nacional
Gabinete do Ministro
Meu caro Salazar:
Mando-te o relatório1 que, para te entregar, me foi enviado do Brasil pelo Pires de Lima2 por um próprio de confiança. Li-o, como ele me pedia, para te poupar, se fosse caso disso, a perderes tu tempo com a sua leitura. Embora devas conhecer as coisas que aí se dizem e muito mais (eu mesmo já conhecia algumas) entendi não dever deixar de mandar-to. Sempre são notas de um observador de grande vibração política que, se não teem para ti cunho de novidade, sempre mostram aquela vibração.
Abraços afectuosos do
Mário de Figueiredo
Documento 18 a)
Hotel Gloria
Avenida Beira Mar
Rio de Janeiro, 6 de Maio de 1942
(Confidencial)
Excelência:
Embora em viagem de estudo, julgo-me na obrigação de informar Vossa Excelência sobre alguns factos políticos que podem interessar, por serem vistos por alguém à margem da diplomacia oficial.
Não é, na minha opinião bem compreendida no Brasil a nossa neutralidade. Essa incompreensão das esferas governamentais (refiro-me principalmente ao Ministro dos Estrangeiros3) estende-se debaixo de oculta mas superior pressão dos jornais e certas camadas de público.
O Brasil adoptou uma atitude internacional de franco apoio aos norte-americanos. O que levou a isso é menos uma afinidade política do que a necessidade, pela atitude do mínimo esfôrço, de uma assistência financeira. A América do Norte alémd e créditos no valor de milhões de dólares tem hoje no Brasil uma base militar no Natal e interferências directas e cada vez mais em grandes emprezas indústriais de siderurgia e borracha.
Para desviar os E. U. do Brasil das suas afinidades rácicas com a Europa, especialmente com Portugal, procura a América do Norte além do envio de missões militares e financeiras, exportar para aqui intelectuais e jornalistas em série. Os nossos livros desapareceram pouco a pouco das montras para serem substituídos por traduções de novelas americanas com pouco sumo mas bastantes aventuras; os jornais inserem entre dezenas de telegramas da América do Norte, um ou outro de Lisboa quási sempre noticiando factos perturbadores como a ocupação de Macau e outros do mesmo género; o público pergunta constantemente o que representam as nossas tropas nos Açores e Cabo Verde e contra quem se dirigem, como se a defesa do território contra qualquer agressor não fosse uma razão bastante.
Pode juntar-se a isto a acção de certos portugueses(?) que a si próprios se chamam livres e que transmitem as suas opiniões e apêlos em certos jornais que são pagas em bons dólares a tanto à linha.
Tomaz Colaço4, por exemplo, que para aqui veio com passaporte de missão especial!?, tem preconizado a formação de um govêrno no Brasil de portugueses livres(?) que colaboraria com os aliados contra o eixo pedindo desde logo o auxílio dêste país para a defeza das nossas ilhas no Atlântico.
Não é possível averiguar até que ponto o govêrno brasileiro concorda com esta propaganda - de resto agora proíbida mercê da intervenção do nosso Embaixador5 - mas é evidente o apoio norte-americano a esta política.
Pode, pois, dizer-se que a atitude do Brasil está, não obstante uma patriótica resistência muito discreta do Presidente Vargas, hipotecada à América do Norte.
Os quistos raciais alemão e japonês nalguns estados do Sul, pela sua política de isolamento, por conservarem a lingua pátria e até pela forma pouco hábil como aqui se conduzem, demonstraram ao Brasil mais uma vez a vantagem da emigração portuguesa. Os nossos compatriotas não constituem com efeito aqui uma colónia estranha. São tão dedicados ao Brasil que se chegam a esquecer que são portugueses.
Mas isto, que é afinal a história de tôda a nossa colonização, não é ainda bem apreciado aqui. A lei que só permite a existência de um terço de estrangeiros em tôdas as emprezas brasileiras, também se aplica a nós o que é manifestamente pouco amigo.
No entanto certos portugueses, embora discordem da atitude de alguns Tomaz Colaços, escrevem, como Sousa Cruz6, cartas à presidência da República em que dizem estar, em caso de guerra, do lado da sua segunda pátria, o Brasil…
Eu parece-me que apesar das discretas mas firmes e patrióticas pressões do Embaixador são poucos os que seguem aqui uma política de rigorosa neutralidade como Vossa Excelência aconselhou.
Os jornais de resto procuram de tôdas as formas confundir os portugueses. E como são todos controlados hoje pela D.I.P. (repartição oficial de censura e propaganda) é fácil de deduzir que pelo menos o ministro Osvaldo Aranha7 não é estranho a esta política de divisão entre a Colónia e o nosso Govêrno.
Eu julgo - méro resultado de uma observação - que os nossos aliados ingleses teem procurado muito discretamente auxiliar-nos. Não lhes convem, com efeito - e êles são suficientemente previdentes para pensarem já no fim da guerra - a crescente influência norte-americana nas américas central e do sul. Interpreto mesmo, à luz de certas informações aqui colhidas, a neutralidade Argentina e Chilena como uma habilíssima manobra inglesa contra os interêsses norte-americanos.
Eles, os ingleses, querem com efeito ganhar a guerra; mas como sempre vão pensando na paz.
E veem com crescente inquietação as suas ilhas da América Central arrendadas aos Estados Unidos; veem as bases militares do Natal; e a influência industrial e comercial cada vez maior no Brasil com a consequente expulsão dos mercados Sul-americanos do comércio inglês. isso obriga a Gran-Bretanha a pensar cuidadosamente no futuro…
Claro está que a delicadesa desta política dúplice torna muito discreta a actuação inglesa para quem a guerra ainda está longe de estar ganha. Estou no entanto convencido da secreta oposição entre os dois países.
Aqui, porém, no Brasil, deve ser a América do Norte a triunfadora. E o Brasil do décimo barco afundado é capaz de entrar na guerra. Nessa altura devemos estar preparados para, por imposição Norte-Americana através do Brasil, nos manifestarmos claramente deixando a nossa neutralidade.
Não me devo, pois, enganar informando Vossa Excelência que no caso do Brasil entrar abertamente na guerra se virão a fazer pressões no sentido das nossas ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde serem entregues à protecção brasileira, ou seja dos soldados norte-americanos…
E isto colocar-nos-ia na situação de romper com os países do Eixo ou com o govêrno do Brasil, com tôdas as catastróficas consequências para as fortunas do milhão de portugueses que aqui se encontram.
Certos portugueses daqui, estribados numa frase infeliz proferida por um dos membros da embaixada intelectual8 que veio em Setembro do ano passado, teem, como já atraz disse, advogado a necessidade de um govêrno livre aqui no Brasil que puzesse à disposição dos aliados as nossas ilhas.
Julgo, pois, necessário ter um cuidado máximo com a segurança política e patriótica dos representantes diplomáticos e consulares no Brasil. Num momento crítico e dada a facilidade com que se procuram aqui comprar as pessoas - devo informar Vossa Excelência que aos representantes consulares de alguns países foram feitas certas ofertas tentadoras - seria perigosíssimo uma tibiesa, já não falo em traição, de qualquer dos nossos representantes.
O Embaixador, o pessoal da embaixada (àparte um ex sargento Teixeira Soares9 que está aqui como adido e que é francamente perigoso), os cônsules geral e adjunto no Rio de Janeiro, parecem-me francamente bons.
Julgo, no entanto, que a representação consular noutras cidades do Brasil é deficiente e pouco segura.
A representação consular no que diz respeito à nossa emigração é também muito imperfeita. Não sei se por falta de meios ou por falta de qualidades (é preciso também notar que o clima brasileiro é emoliente e destruidor de actividades) o que é certo é que o emigrante não tem acção de presença que lhe relembre constantemente a pátria. Não existem ficheiros de acompanhamento onde se registassem a orientação, o passado, o triunfo ou a derrota, a situação financeira ou até as ligações políticas dos que para aqui veem.
Não é simpática evidentemente a coacção policial que certos países do eixo uzavam para com os seus emigrantes rebeldes à orientação política dos govêrnos respectivos; mas, no caso, por exemplo, de Tomaz Ribeiro Colaço, justifica-se que através da polícia a família que êle aí tem o chamasse a Portugal…
Permito-me ainda fazer uma referência especial a dois grandes lusófilos, Pedro Calmon10 e Afrânio Peixoto11, os quais bem merecem todas as homenagens que lhes temos prestado pela sincera amizade e devoção que teem por Portugal; e dizer duas palavras sôbre o Embaixador cuja acção pode não ter grande magnetismo pessoal, mas tem sido sèriamente útil pela lúcida visão e exacta compreensão da política de Vossa Excelência.
Ao terminar êste relatório, que ninguém me encomendou mas que fiz por julgar na obrigação plítica de observar e de ser útil ao meu Presidente que aqui, mais talvez ainda - se é possível - do que em Portugal quero servir, permito-me respeitosamente fazer algumas sugestões sínteses do que atraz digo:
1) Os consulados deveriam acompanhar com mais método e proximidade os nossos emigrantes estabelecendo os ficheiros em que atraz falo, premeando os que se mantivessem firmemente portugueses, desaconselhando-lhes a naturalização, de acôrdo com a Polícial Internacional daí, estabelecendo pressões delicadas e discretas no sentido de disciplinar as suas actuações políticas;
2) Estabelecimento de uma verba de propaganda (os jornalistas brasileiros não são caros) que permitisse uma acção paralela ou talvez mais intensa junto dos jornais do que aquela que é exercida pelos norte-americanos;
3) Envio de um ou dois agentes da Polícia que auxiliassem a obra diplomática e consular junto dos nossos emigrantes;
4) Aproveitamento do alarme aqui provocado pelas prisões de alemães e japoneses para valorização da nossa emigração agora melhor apreciada. Seria a altura de pedir a abolição para os portugueses da «lei dos terços»;
5) Estabelecer em Portugal uma escola de emigrantes proibindo od que venham sem condições físicas e morais de triunfo; a vinda de analfabetos e de famílias completas;
6) Dificultar a vinda de mais emigrantes no caso de o govêrno brasileiro não modificar as condições do seu acolhimento (é preciso notar que as palavras de amizade em quási nada correspondem aos actos);
7) Procurar através de conversas e ligeiras palestras esclarecer melhor os portugueses daqui sôbre a nossa neutralidade e as suas vantagens para os dois partidos beligerantes;
8) Controlar todos os discursos e conferências de pessoas que aqui vierem oficialmente e que nem sempre teem a exacta compreensão dos seus deveres.
Perdoe Vossa Excelência êste serviço talvez inútil mas bem intencionado de uma pessoa que aí ou aqui, só pensa na Pátria e, portanto, em servir aquele que melhor que todos nós está servindo12.
Augusto P. de Lima
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Todo este processo é publicado no documento 18 a) conforme se encontrou.
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António Augusto Pires de Lima (1880-1953) - advogado, professor e reitor liceal no Porto e membro da União Nacional. Foi Director-Geral do Ensino Secundário no Ministério da Educação Nacional.
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O Ministro das Relações Exteriores do Brasil era nesta época Osvaldo Aranha.
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Tomás Ribeiro Colaço (1899-1965) - advogado, poeta e dramaturgo, com larga colaboração dispersa pela imprensa. Fundou em 1934 o semanário literário Fradique. Foi secretário das Juventudes Monárquicas. Em 1940 fixou residência no Brasil onde se aproximou das posições e das actividades dos meios portugueses de oposição ao regime salazarista.
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O embaixador de Lisboa no Rio de Janeiro era então Martinho Nobre de Melo (1891-1985) - Professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, diplomata e político. Doutrinador do Integralismo Lusitano e do corporativismo, dirigente da organização Cruzada Nun’Álvares que desempenhou papel importante na preparação do «28 de Maio» de 1926. Foi conselheiro da privacidade do general Gomes de Costa na sua fugaz passagem pelo poder, chegando a ser seu Ministro dos Negócios Estrangeiros em 1926. Em 1932 é nomeado embaixador de Portugal no Rio de Janeiro, lugar que ocupa até 1946, continuando depois, por algum tempo, a viver no Brasil. Depois de regressar a Portugal é durante vários anos director do jornal Diário Popular.
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Albino Sousa Cruz - personalidade destacada da colónia portuguesa no Brasil.
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Osvaldo Euclides de Sousa Aranha (1894-1960) - estadista e diplomata brasileiro apoiante de Getúlio Vargas. Foi ministro das Relações Exteriores durante a II Guerra, sendo partidário da aproximação do Brasil aos E.U.A. e à causa aliadófila.
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Embaixada especial que se deslocou ao Brasil em 1941 para agradecer a participação daquele país nas comemorações do duplo centenário de 1940, em Portugal. Era presidida por Júlio Dantas e integrava Augusto de Castro, Reinaldo dos Santos, Marcelo Caetano, João Ameal, o cap. de fragata Vasco Lopes Alves e o major Carlos Afonso dos Santos (Carlos Selvagem).
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Manuel António Teixeira Soares - funcionário diplomático com várias missões cumpridas durante a I República; foi chanceler com a categoria de terceiro secretário na Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro desde 17/4/1937.
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Pedro Calmon Moniz de Bittencourt - professor, escritor, político e diplomata brasileiro com vasta obra publicada nos domínios da história, da cultura e da educação. Presidiu à Delegação Interacadémica do Brasil que negociou em Lisboa o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro.
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Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) - professor, escritor e político brasileiro; especialista em estudos camonianos; membro da Academia Brasileira das Letras.
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Os sublinhados são de lápis azul do punho de Salazar.
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