O Império segundo Pessoa
aosAs respostas de Fernando Pessoa a um inquérito feito nos anos 20 por Augusto da Costa. A propósito de mitos e impérios…
OPUS CITATUM
Organizem-se! — A gestão segundo PessoaFilipe S. FernandesOficina do Livro, 2007Resposta ao inquérito “Portugal, Vasto Império”I — Sim ou não Portugal, potência de primeira grandeza na Renascença, guarda em si a vitalidade necessária para manter no futuro, na nova Renascença que há-de seguir-se à Idade Média que atravessamos, o lugar de uma grande potência?
(1) Cumpre, antes de mais nada, definir a expressão “grande potência”. Por “grande potência” se deve entender, evidentemente, uma nação que influi notavelmente na vida ou nos destinos da civilização. Podemos, porém, distinguir três maneiras de assim influir notavelmente. Distinguiremos, portanto, três espécies de “grande potência”.
Influir é transformar. Há três maneiras de transformar: transformar para menos, ou desagregar; transformar para mais, ou desenvolver; transformar para outro, ou construir. Força é, pois, que as grandes potências se manifestem tais, ou pela desagregação que produzem; ou pelo desenvolvimento que promovem; ou pela construção que estabelecem ou novidade que originam.
Duas são as forças da desagregação — a decadência e a violência externa. A decadência é intransmissível: pode ser estimulada, porém não imposta; são portanto seus estímulos, que não ela mesma, que comportam transmissão. A violência externa, pelo contrário, é imposição por natureza. Uma grande potência de desagregação significa portanto uma grande potência de violência, ou seja, uma grande potência guerreira. É este o sentido em que ordinariamente se toma a expressão “grande potência”: é que a violência, como é a força visível, representa para o comum dos homens o modo único de força.
Duas são também as forças de desenvolvimento — o estímulo físico ou material; e o estímulo intelectual ou moral. Na vida das sociedades, o primeiro é dado pelo comércio, o segundo pela cultura. Com efeito, o desenvolvimento dos povos se efectua, no que material, pela multiplicação de contactos económicos; no que mental, pela multiplicação de contactos culturais. E o comércio e a cultura andam comummente a par: é que a multiplicação de relações de uma espécie facilita inevitavelmente a multiplicação de relações da outra espécie. Há, pois, duas espécies de “grandes potências” expansivas da vida alheia: as potências primordialmente económicas, como a Alemanha e os Estados Unidos, e as potências culturais, como antigamente a Itália e subsequentemente a França.
Qualquer transformação pode ser definida como sendo“para outro”, porém a transformação construtiva merece esse nome distintivamente. Na transformação para mais ou para menos a coisa transformada mantém os seus característicos essenciais; a transformação é quantitativa. Na transformação para outro a mudança é qualitativa. Que característicos adquire, porém, a coisa transformada, ao ser transformada “para outro”? Os do elemento transformador, pois outros não há que possivelmente adquira. Segue, pois, que a transformação construtiva implica uma conversão da substância da coisa transformada na substância da coisa transformadora. À nação que exerce esta espécie de influência, que é uma “grande potência” nesta função, chama-se com justeza, não grande potência, senão Império. Até hoje, adentro da civilização que vivemos, tem havido quatro impérios — o grego, o romano, o cristão, e o inglês (que não o britânico, que é império em outro, e mais baixo, sentido). Com sua prodigiosa visão, histórica como profética, distingue sempre Nostradatnus entre o que chama simplesmente empire (que é qualquer dos grandes domínios fugazes com que se orna a história) e grand empire, que é o Império no sentido em que aqui usamos o termo.
Sem dúvida que as três formas de ser grande potência se não excluem entre si; antes a duas, e a mais que duas, as pode reunir uma só nação.
(2) Postos estes princípios, pergunta-se: para que forma de grande potência tem Portugal condições, se as tem para alguma?
Portugal, grande potência guerreira, ou desagregadora, é invisionável, o que não quer dizer que seja impossível, pois não podemos prever que alianças ou combinações poderão surgir do abismo do futuro. A pergunta, porém, refere-se às condições que Portugal tem, que não àquelas que poderá um dia vir a ter; e por “condições que tem” se entendem aquelas que ou estão hoje claramente latentes nele, ou em qualquer forma ou esboço nele se revelaram no passado. Ora, pondo de parte, por irrisório neste respeito, o que somos hoje, o facto é que nunca tivemos condições ou propensão para a forma guerreira de grande potência. Nem para tal nos dispunha a nossa situação terrestre de nação pequena e excêntrica em continente e península; nem, em prova disso, nos empenhámos nunca com vantagem em guerras puramente agressivas, excepto as que procederam inevitavelmente do nosso mester orgânico de descobridores. E estas viveram na atmosfera triunfal do fenómeno que lhes deu origem.
Portugal grande potência económica é talvez ainda mais invisionável do que Portugal grande potência guerreira. Uma potência guerreira forma-se e desenvolve-se com mais facilidade e rapidez do que uma potência económica, pois procede de instintos e forças mais primitivos do que esta. E se de potência guerreira não temos tradição senão por assim dizer corolária, de potência económica não temos tradição nenhuma, ou a temos negativa. Ainda, pois, que uma expansão ou federação futura nos convertesse em grande nação — sem o que se não pode ser uma grande potência económica —, nossa acção nesse campo seria sempre limitada pela de núcleos não só quantitativamente superiores ao nosso, mas ainda preparados tradicionalmente para o exercício dessa espécie de influência.
Portugal grande potência cultural é uma hipótese já de outro género. O exercício da grande influência guerreira ou económica implica a existência de uma nação grande, unida, disciplinada; o da grande influência cultural dispensa estes característicos. Exerceu-a a Itália quando nem sequer era nação, se não uma justaposição de pequenos Estados, em conflito perpétuo uns com os outros, e cada um em quase constante desordem interna. Nem a nossa condição actual é, pois, obstáculo neste respeito; é-o, porém, a nossa carência, quase absoluta de tradição cultural, propriamente dita. Quantitativamente, nunca a tivemos; qualitativamente, pouco. No fim da chamada Idade Média, e no princípio da Renascença, esboçámos, é certo, um acentuado movimento cultural, que abrange os Cancioneiros, os Romances de Cavalaria, e um ou outro fenómeno como a especulação de Francisco Sanches, aliás formado em outro ambiente; mas em breve o vinco, muito mais tipicamente nacional, das descobertas arrastava para si toda a vitalidade portuguesa, e o catolicismo, então em período de reacção, se encarregou de anular aquela liberdade de especulação, sem a qual a cultura é impossível. Ficámos no estado vil de inteligência, servil e mimético, em que desde esse tempo temos vegetado. Se, porém, a necessidade cultural fosse, por qualquer razão, em nós orgânica, teria havido dela sinais, sobretudo desde que entrámos, com o mimetismo já citado, em regímen liberal e depois em República. Mas o que tem havido é menos que pouco; a nossa indisposição cultural permanece evidente.
Portugal grande potência construtiva, Portugal Império — aqui, é que, através de grandeza e de decadência, se revela o nosso instinto, e se mantém a nossa tradição. Somos, por índole, uma nação criadora e imperial. Com as Descobertas, e o estabelecimento do Imperialismo Ultramarino, criámos o mundo moderno — criação absoluta, tanto quanto socialmente isso é possível, que não simples elaboração ou renovação de criações alheias. Nas mais negras horas da nossa decadência, prosseguiu, sobretudo no Brasil, a nossa acção imperial, pela colonização; e foi nessas mesmas horas que em nós nasceu o sonho sebastianista, em que a ideia do Império Português atinge o estado religioso.
Portugal tem pois condições orgânicas para ser uma grande potência construtiva ou criadora, um Império. Uma coisa, porém, é dizer-se que Portugal tem condições para sê-lo; outra é predizer que o será. A pergunta não exige esta segunda demonstração, que, aliás, por extensa não poderia ser aqui dada. Nem há mester que se diga, também, em que consistirá presumivelmente essa criação portuguesa, qual será o sentido e o conteúdo desse Quinto Império. Fora preciso um livro inteiro para o dizer, nem chegou ainda a hora de dizer-se.
II — Sim ou não Portugal, sendo a terceira potência colonial, tem todos os direitos a ser considerada uma grande potência europeia?
Como Portugal, grande potência, está no futuro — ou, se se preferir, só pode estar no futuro —, não pode exigir ao presente que o considere por aquilo que ele ainda não é, nem se sabe ao certo se será. Mas, como é a terceira potência colonial, pode e deve exigir que o tratem como a terceira potência colonial.
III— Sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a razão de ser como povo independente no concerto europeu?
Para o destino que presumo que será o de Portugal, as Colónias não são precisas. A perda delas, porém, também não é precisa para esse destino. E, por certo, sem Colónias ficaria Portugal diminuído ante o mundo e perante si mesmo, material como moralmente. As Colónias, portanto, não sendo uma necessidade, são contudo uma vantagem.
IV — Sim ou não o moral da Nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade colectiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza nacional? Na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?
Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação — a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa. Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, por cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.
Nota
Publicado no Jornal do Comércio e das Colónias a 28 de Maio de 1926 e 5 de Junho de 1926. O inquérito foi efectuado por Augusto da Costa e neste texto foram suprimidos os seus comentários. O autor das entrevistas acabou por reuni-las em livro, Portugal, Vasto Império, de 1934, onde acabou por republicar a entrevista de Fernando Pessoa.