Mandato indeclinável
aosPrimeira de três entrevistas a Marcello Caetano no exílio, concedidas ao semanário do Rio de Janeiro O Mundo Português e publicadas em 1976 no livro O 25 de Abril e o Ultramar — três entrevistas e alguns documentos.
OPUS CITATUM
O 25 de Abril e o Ultramar — três entrevistas e alguns documentosMarcello CaetanoEditorial Verbo, 1976págs. 9 – 27É um homem que não faz política, que não quer discutir política, que se recusa, até, a abordar qualquer questão da política portuguesa (segundo as suas próprias palavras).
O Mundo Português — Mas, nós viemos aqui para falar do passado. O senhor professor não pode negar o seu testemunho para a História… De resto, já fez um depoimento. E há assuntos que decerto gostaria de confirmar ou rectificar, até porque alguns andam tratados de modo desfavorável para si em livros ultimamente aparecidos em Portugal…
Marcello Caetano — Sim, consta-me que sou acusado e caluniado. Mas esse é o destino dos vencidos: todos procuram carregá-los com culpas, todos se apresentam como capazes de ter resolvido facilmente o que eles não puderam fazer… E há tanto louco e tanto patife interessado em baralhar e confundir…
M.P. — Podemos então fazer as perguntas?
M.C. — É costume dizer que se pode perguntar tudo… o que não implica compromisso de a tudo responder. Mas é melhor desde logo assentarmos em que, por favor, não me faça certas perguntas. Por exemplo: se eu como chefe do Governo «tinha na mão» a Justiça Portuguesa, o Poder Judicial constitucionalmente independente e exercido por magistrados cuja integridade esteve sempre acima de qualquer suspeita… Ou se o presidente do Conselho podia obstar a que fosse cumprido um mandado de captura expedido pelo tribunal que decretou a prisão preventiva, num processo instaurado por particulares e por crime particular, do réu, só porque este se considerava «industrial importante» ou se em Portugal alguma vez no meu Governo se nomearam por decreto os juízes que haviam de julgar certo processo ou certo réu, monstruosidade cuja falsíssima alegação pode deixar no estrangeiro uma desastrosa ideia do Governo e da Justiça no meu país. Se fosse para me fazer perguntas dessas não valeria a pena a entrevista. São necedades que nem merecem respostas 1.
M.P. — Não, senhor professor. Eu queria ouvi-lo sobre questões que interessam à História e ao destino da Nação Portuguesa.
M.C. — Bem, isso é outra coisa. Estou ao seu dispor.
M.P. — Então comecemos: o senhor presidiu ao Governo português durante cinco anos e meio. O problema mais grave do País era o do Ultramar. Porque não o resolveu?
M.C. — Se me dissesse: o problema mais simples era do Ultramar compreendia melhor a pergunta…
M.P. — Há quem ache que os governantes devem dar maior atenção aos problemas mais graves.
M.C. — E quem disse que eu não a dava toda? Durante esses cinco anos e meio, a questão ultramarina preocupou-me dia e noite. Nenhum português reflectiu tanto nela, a virou por tantos lados, fez tantas diligências para lhe encontrar solução…
M.P. — E apesar disso…
M.C. — Nos discursos que proferi e nas «conversas em família» na TV, essa minha preocupação era revelada e o povo português foi mantido sempre a par do meu pensamento e das dificuldades e dos obstáculos que tinham de ser vencidos.
M.P. — Qual o seu pensamento?
M.C. — O meu pensamento era de que qualquer solução para o problema ultramarino tinha de obedecer a duas condições fundamentais: garantir a presença activa dos elementos civilizados nos territórios onde habitavam e assegurar a continuidade da cultura portuguesa nesses territórios. Qualquer evolução deveria conduzir à formação de sociedades multirraciais nas províncias ultramarinas e à sua integração numa Comunidade Lusíada.
M.P. — Procurou pôr em prática essa ideia?
M.C. — Não fiz outra coisa. É falso afirmar-se que considerava a decisão da questão ultramarina como um problema militar e não político. Tive, defendi e executei uma política que era a da «autonomia progressiva e participada». Mas soluções construtivas levam tempo a pôr de pé. Só as entregas sem condições, as capitulações vergonhosas, podem ter lugar de um dia para o outro.
M.P. — A autonomia não conduziria à independência das ex-colónias?
M.C. — Não foi preciso muito tempo no Governo para tomar consciência de que o mundo inteiro, incluindo as potências amigas e aliadas, não aceitava outra solução para o problema ultramarino português que não fosse a independência…
M.P. — Então…
M.C. — Tive de admitir, portanto, que a política a seguir deveria conduzir à independência dos grandes territórios, como Angola e Moçambique, criando condições para se tornarem Estados — fui-lhes dando mesmo essa designação — que pudessem governar-se um dia por si.
M.P. — De modo que o professor aceitou a hipótese de ser dada independência às províncias ultramarinas?
M.C. — Realisticamente, conclui que era inevitável. Não se deve acreditar nas balelas de que nas Nações Unidas se estava empenhadíssimo no êxito da chamada política de integração. Mas para mim a independência seria uma fórmula jurídico-política secundária desde que com ela se salvasse aquilo que indiquei há pouco: as sociedades multirraciais, em que pretos e brancos colaborassem, na medida das suas capacidades, em todos os aspectos da vida, incluindo no Governo e na Administração, e na continuidade da cultura portuguesa dentro de uma Comunidade Lusíada.
M.P. — Efectivamente, no seu livro Depoimento, o senhor diz mais ou menos isso nas últimas palavras da última «conversa em família»: «Enquanto ocupar este lugar não deixarei de os ter presentes aos portugueses do Ultramar, no pensamento e no coração. Procuremos as fórmulas justas e possíveis para a evolução das províncias ultramarinas, de ordo com os progressos que façam e as circunstâncias do Mundo: mas com uma só condição, a de que a África portuguesa continue a ter a alma portuguesa e que nela prossiga a vida e a obra de quantos se honram e orgulham de portugueses ser.»
M.C. — Obrigado por terem lembrado essa passagem. E podem encontrar-se várias outras afirmações anteriores com o mesmo sentido. Porque era a minha ideia constante.
M.P. — Mas o senhor professor exprimia-se sempre em termos bastante velados. Dizia-se em Portugal que a diferença de atitude do público perante os discursos do Doutor Salazar e os seus é que as pessoas não entendiam o Doutor Salazar, mas sabiam perfeitamente o que ele queria, ao passo que, a si, entendiam muito bem o que dizia, mas não percebiam o que queria…
O professor Marcello Caetano ri-se e responde: «É uma blague. Se entendiam muito bem o que eu dizia e se as minhas palavras exprimiam o meu pensamento, claro que tinham de saber o que eu queria… A diferença está em que o Doutor Salazar governou em um longo período de estabilidade e falava afirmando as suas certezas. A mim coube-me uma época de transição em que tinha de ser cauteloso para ir conduzindo as coisas com jeito, certo de que as precipitações podiam conduzir, como se viu, à catástrofe…»
M.P. — Mas se o senhor tivesse dito claramente que estava preparando a independência do Ultramar, isso fixaria um objectivo interno e acalmaria os inimigos externos de Portugal, estou certo disso.
M.C. — Está certo disso? Pois eu não. Aliás as pessoas, passados poucos anos, esquecem-se das realidades que se viviam tempos atrás.
M.P. — Se o senhor tivesse afirmado claramente…
Marcello Caetano atalha, num movimento de impaciência: «Eu não podia afirmar coisa em contrário da Constituição da República e da consciência do povo português. Não fui ditador. Agi dentro do condicionamento da legalidade, muito mais respeitador do espírito, e até de formas… da democracia do que a maioria dos governos que se apresentam como modelos democráticos. Não podia, nem devia, tomar compromissos de que dependessem a integridade e o futuro da Pátria sem um mandato popular expresso.
M.P. — O professor pensava então que o seu papel era apenas o de ir encaminhando as coisas…
M.C. — No meu pensamento, a independência impor-se-ia por si na altura própria quando as condições para ela estivessem criadas e o povo português assim compreendesse. Eu não poderia anunciar que iria ser dada a independência numa altura em que, é bom não o esquecer, a grande maioria do povo português era contrária a essa ideia. Por outro lado, no dia em que se anunciasse que iria ser dada independência às províncias ultramarinas, mesmo a longo prazo, o Governo português perderia o controle dos acontecimentos. É a lição dada por todos os casos de descolonização e que o caso português, depois de 1974, veio confirmar.
M.P. — O senhor diz que a grande maioria do povo português era contrária à concessão da independência às províncias ultramarinas. Como o sabe?
M.C. — As eleições de 1969, as primeiras eleições de deputados que promovi, a que concorreram quatro grupos políticos — A União Nacional, a C.D.E. (comunista) a C.E.U.D. (socialista) e o P.P.M. (monárquico) -, realizaram-se em torno do problema ultramarino. Fui criticado pela direita do regime por ter deixado discuti-lo. Mas para mim era fundamental que o País exprimisse a sua opinião. A propaganda eleitoral foi livre, livres correram as eleições como foi testemunhado por quantos o quiseram ver e está documentado nos livros que sobre elas foram depois publicados por autores oposicionistas, Delas recebeu o Governo, relativamente ao Ultramar, o que eu chamei um Mandato indeclinável.
M.P. — Não lhe parece que é contraditório dizer que recebeu um mandato para defender o Ultramar e confessar que admitia a preparação da independência dele?
M.C. — Não. O País condenava o entreguismo. Não podia congelar uma política. Uma coisa era repelir o abandono. Outra impedir que se procurasse a forma mais adequada de salvar os valores nacionais e humanos que o ultramar português representava. Era obrigação dos governantes procurar essa forma e ir explicando ao País o que convinha fazer para a executar. Foi o que fiz.
M.P. — Mas tão lentamente…
M.C. — Pois é, podia ter sido tudo feito do pé para a mão como depois do 25 de Abril… Eu falei há pouco das dificuldades que tinha a vencer para fazer vingar a solução conveniente a Portugal — e estou também convencido de que seria também a solução que convinha aos destinos da Humanidade. Essas dificuldades eram, umas, internas e a essas acabo de fazer referências. As outras, as internacionais, eram muito mais graves e cada vez menos susceptíveis de ser influenciadas pela nossa palavra e a nossa acção. É curioso: as pessoas hoje falam como se o Governo português tivesse liberdade de resolver como entendesse e quando entendesse. E esquecem-se de que, quando tomei conta do Governo, já na ONU a questão do ultramar português estava posta em termos terminantes e inaceitáveis para quem não quisesse entregar, pura e simplesmente, as províncias ultramarinas e os portugueses que nelas viviam à mercê dos movimentos terroristas.
M.P. — Assim tão terminantes?
M.C. — Sim. Aliás mais de uma vez expliquei ao povo português, nas «conversas em família» ou noutros ensejos, as condições formuladas nas moções que todos os anos eram aprovadas na Assembleia Geral das Nações Unidas acerca do Ultramar. Era evidente, como também expliquei — e depois se confirmou -, que aceitá-las equivalia a entregar as províncias à selvajaria desenfreada e aos inimigos de Portugal.
M.P. — Pode recordar essas condições?
M.C. — Posso. Portugal era intimado a reconhecer imediatamente às populações das suas províncias ultramarinas o direito à autodeterminação e à independência. E para o exercício desse direito deveria começar por retirar dos respectivos territórios todas as forças armadas ou de segurança (a própria polícia!) que lá mantivesse; conceder ampla amnistia política, incondicional, para permitir aos elementos dos movimentos que nos combatiam o regresso e a livre acção; e transmitir todos os poderes a instituições representativas das populações indígenas. Nas últimas moções já se dizia mesmo que a transmissão de poderes devia ser feita aos «movimentos de libertação».
M.P. — Mas essas condições não podiam ser alteradas por negociação?
M.C. — Tentámos fazê-lo. Nos meus encontros com os dirigentes do mundo ocidental expunha-lhes a política que me propunha seguir e era compreendido e até estimulado. Mas eles nada podiam contra a ululante maioria afro-asiática da Assembleia Geral das Nações Unidas nem se atreviam, em público, a contrariar a frenética demagogia do anticolonialismo a todo o transe. Conversas com representantes dos países africanos foram tidas e tentadas dentro e fora das Nações Unidas. Em vão. Só nos perguntavam quando abandonaríamos as «colónias».
M.P. — Desculpe a insistência: o professor podia ter o projecto de, através da «autonomia progressiva e participada», ir encaminhando as províncias ultramarinas para a independência. Mas aos olhos dos observadores estrangeiros, e parece que dos militares portugueses, ia tão lentamente que se diria tratar-se apenas de una expediente «para inglês ver»…
M.C. — Pois é. Isso é o que pensariam as pessoas para quem tudo aquilo que não têm a responsabilidade de fazer é facílimo. Olhe: Angola era, em começos de 1974, um dos mais dinâmicos, senão o mais dinâmico, território do continente africano sob o ponto de vista económico e social. O entusiasmo com que se processava o seu progresso era geral e contagiante. A valorização do petróleo e das matérias-primas que produzia fornecia-lhe recursos financeiros abundantes. Por todo o lado brotavam novas iniciativas. Havia trabalho para todos, bons salários, perspectivas de futuro. Desenvolvia-se a educação, a assistência sanitária, a previdência social. O terrorismo praticamente tinha desaparecido. Tinham-se feito eleições que haviam aumentado a representação da população nativa em todos os corpos administrativos e assembleias políticas. Em condições normais, dois, três anos seriam suficientes para uma independência equilibrada que desse ao Mundo um novo Brasil, próspero e promissor, onde reinasse o entendimento racial e que fosse um factor de paz entre as nações.
M.P. — É uma visão elegíaca. Mas…
M.C. — Mas essas perspectivas só eram toldadas porque as Nações Unidas, em vez de confiarem o problema do ultramar português às responsabilidades históricas de Portugal, tumultuavam o problema com exigências estúpidas, racistas e inaceitáveis. E das suas tribunas irradiava uma propaganda que por esse Mundo fora ecoava em palavras de ódio, onde a ignorância se casava com a injustiça, contra Portugal e o seu Governo.
M.P. — O professor acusa então as Nações Unidas de terem prejudicado a solução que Portugal queria dar ao problema das províncias ultramarinas?
M.C. — Acuso. Acuso com a plena consciência do que digo. Hoje creio que já ninguém de mediana cultura e bom senso alimenta dúvidas sobre a inépcia da ONU para resolver os graves problemas mundiais. E sobretudo acerca do ambiente emotivo, passional, irracional, que domina a sua Assembleia Geral e inspira as respectivas deliberações. A primeira responsável do drama, para não dizer tragédia, vivido nos últimos dois anos pelo ultramar português é a Organização das Nações Unidas.
M.P. — O professor não falou em Moçambique…
M.C. — Moçambique… Já mais de uma vez ouvi dizer aqui no Brasil que era um dos territórios mais atrasados do continente africano. Como se espalham falsidades! Quem assim fala não conheceu os seus grandes portos de Lourenço Marques, da Beira, de Nacala, admiravelmente apetrechadas; as numerosas grandes cidades, belas, ricas, progressivas; as suas modelares plantações; a sua rede exemplar de transportes; os seus bons serviços públicos, a sua admirável integração racial com a convivência de pretos, brancos e amarelos nesse cruzamento entre o Ocidente e o Oriente que, na margem do Índico, Moçambique constituía. Nem conheceu, claro está, a sua economia. Havia, como em toda a África, direi melhor, como em toda a zona tropical, vastos espaços vazios. Mas que o esforço do homem e a capacidade da técnica iam vencendo e ocupando cada vez mais…
M.P. — Estava portanto Moçambique à beira também de reunir as condições de independência?
M.C. — Em meu entender, por circunstâncias conjunturais, isso levaria mais algum tempo, se quiséssemos proceder com as cautelas todas. Mas sendo necessário, a nossa fórmula podia ser aplicada mais rapidamente — se a ONU deixasse.
M.P. — Consta que o presidente Kaunda estava pronto a garantir uma fórmula favorárel de transição, mediante acordo com a Frelimo…
M.C. — O presidente da Zâmbia sonhava, como outros governantes africanos, desempenhar um papel de grande estadista como intermediário entre Portugal e os movimentos terroristas. Mas também não tinha outra ideia que não fosse levar-nos à negociação com eles para combinarmos as datas da independência… Dizia que garantiria a fidelidade aos acordos. E quem nos garantia a possibilidade de ele nos dar essa garantia? Viu-se. Foi em Lusaka, capital da Zâmbia e sob as bençãos de Kaunda, que se celebrou o acordo para a independência de Moçambique após o 25 de Abril. Conseguiu ele o respeito desse acordo pela Frelimo? O respeito da vida e dos bens dos portugueses que estavam estabelecidos na África Oriental?
M.P. — Quem sabe, porém, se feito antes da deterioração da situação das tropas portuguesas, contando com pessoas audaciosas para pôr em prática o acordo do lado português, as coisas não teriam corrido melhor?
M.C. — Olhe! A hipótese de uma independência unilateral de Moçambique, levada a cabo por brancos e pretos e logo reconhecida pelo Governo português, até chegou a ser uma hipótese no conjunto das soluções que era meu dever examinar. Usando dos diversos canais de informação de que dispunha, auscultei o que pensariam sobre ela colonos de Moçambique, dirigentes da Frelimo e meios das Nações Unidas. As sondagens foram todas negativas. Dos colonos recolhi que os brancos com quem se dizia que se faria o golpe não tinham o prestígio que julgavam; da Frelimo, vim a saber que mesmo quando participasse de um governo nessas condições não desistiria de alcançar o poder total, o que esperava que em tal hipótese acontecesse num mês; nas Nações Unidas considerava-se tal golpe um expediente «colonialista» que não satisfazia às condições exigidas nas resoluções aprovadas sobre o ultramar português e criaria uma situação semelhante à da Rodésia, porque só era aceitável o Governo de maioria negra. Já vê que há mais coisas nos céus e na terra do que sonham certos imaginativos…
M.P. — Mas porquê a sua recusa sistemática a negociar com os «movimentos de libertação»?
M.C. — Essa pergunta já não teria muita razão de ser há dois anos, porque repetidamente expliquei ao povo português que a experiência das anteriores descolonizações mostrava que negociar era capitular, e nenhum dos acordos fora respeitado nas cláusulas de garantia dos direitos dos antigos colonizadores.
M.P. — No livrinho Razões da Presença de Portugal no Ultramar, onde estão reunidos excertos dos seus discursos, vêm essas explicações…
M.C. — E nos cinco volumes em que foram compilados os meus pronunciamentos como chefe do Governo e no volume intitulado Depoimento, que publiquei já no Brasil, prova-se, creio eu, quanta atenção dei aos problemas ultramarinos e como constantemente procurei argumentos para defender e consolidar a posição portuguesa e fiz esforços para persuadir nacionais e estrangeiros das nossas razões. Foi uma luta árdua, dura, esgotante e por isso nada me dói mais do que ver-me agora acusado de não ter zelado como devia pelo destino do ultramar português. No livrinho de que fala vê-se o que tantas vezes disse acerca do que valiam as negociações com terroristas e a sequência que tinham tido. Por exemplo, naquela «conversa em família» de Janeiro de 1973, a seguir ao caso da capela do Rato, pode ler-se o que disse acerca de acordos com terroristas em que houvesse garantias para os antigos colonizadores.
M.P. — Tenho aqui esse livro. O senhor pergunta quem responderia pela observância dessas garantias, e fala no exemplo do Congo Belga. «O Governo belga concedeu generosamente a independência. Foram celebrados acordos firmíssimos. E depois? Depois, foi o cortejo de sevícias, de morticínios, de violações de que o Congo Belga constituiu teatro e de que muita gente em Angola se recorda de ver alguns restos na trágica passagem por Luanda de tantas vítimas, de corpos e almas destroçados. Depois foi a ruptura sucessiva, uma a uma, das obrigações e garantias assumidas para com a Bélgica…»
M.C. — Obrigado pela citação, lembro-me que citei uma série de casos encadeados nessa tragédia. E trouxe o depoimento de Paul Spaak — um depoimento dolorosamente vivido! — acerca da impotência das Nações Unidas para fazer valer e obrigar a observar os acordos que tinha incitado e aprovado.
M.P. — É! O senhor conclui esse capítulo dizendo: «Não são as Nações Unidas que terão capacidade, pois, para garantir quaisquer acordos de entrega do poder aos movimentos terroristas que a sua maioria acarinha, louva e apoia.»
M.C. — Não cito outros exemplos?
M.P. — Cita o da França, e mostra que também os seus acordos de descolonização foram desrespeitados e rotos pelos governantes dos novos Estados.
M.C. — Voltei ao assunto no discurso proferido em 5 de Março de 1974 perante a Assembleia Nacional- pouco mais de um mês antes do 25 de Abril para reforçar a opinião exposta com novos casos, como o de Madagáscar; e, apesar disso, como pode ver-se algumas páginas antes, eu não me mostrava fechado a conversações: «As Nações Unidas intimam-nos ‘a negociar com as partes interessadas’. Mas as partes interessadas no destino do ultramar português são as suas populações. São os pretos e os brancos que lá vivem e querem conviver em paz. É de entre eles que, de acordo com as suas capacidades e qualificações, pretendemos encontrar interlocutores…»
M.P. — Encontraram-nos?
M.C. — Sim, nos muitos autóctones que faziam parte em 1974, por eleição juntamente com brancos nascidos lá, das assembleias legislativas e das câmaras municipais das províncias. E até entre terroristas: através do comando do general Bethencourt Rodrigues, houve conversas com Savimbi para que este, aderindo ao plano da autonomia progressiva, viesse participar no Governo de Angola. Recebi várias cartas dele. Mas essa gente é instável, fugidia e interesseira. Não se chegou a acordo.
M.P. — De forma que o senhor foi sempre contrário a negociações para tratar da descolonização…
M.C. — Fui e não me arrependo. Se até 1974 o que eu disse era inspirado no raciocínio e na experiência alheia, creio que o que se passou depois forneceu uma experiência própria bem eloquente também… Os movimentos chamados «libertadores» ignoraram com a maior desfaçatez os acordos feitos. Se eu tivesse fraquejado e consentido em negociações em que do lado dos terroristas estaria o peso de todas as potências que os apoiavam e da opinião pública internacional, eu teria caminhado para a capitulação desonrosa, e para acordos que, como esses, não valeriam coisa nenhuma. E hoje não dormiria, torturado pela intranquilidade de consciência. Veja nessa fala de Janeiro de 1973 o que eu disse: «Se daqui amanhã, por fraqueza ou errada visão de quem governa, suceder em África que milhares de famílias percam os seus lares, e as mulheres a sua honra, e as pessoas as suas vidas, e a desolação, a ruína e a morte se espalharem onde hoje reina a paz e floresce o progresso — será aos devotos pacifistas que as vítimas, e a Nação inteira, pedirão responsabilidades e clamarão justiça?» Se eu tivesse capitulado nessas condições e por minha culpa houvesse varrido o ultramar português essa onda de violência racista que em poucos meses destruiu a obra material e moral de séculos eu estaria como a personagem de Shakespeare a quem nem toda a água do mar bastaria para lavar o sangue que lhe ensopava as mãos…
M.P. — Mas indirectamente não opondo resistência ao Movimento de 25 de Abril, o senhor não teria sido responsável?
M.C. — Aí está outra infâmia que só miseráveis mentirosos e loucos podem ter concebido e posto a correr. Falaremos sobre ela noutra ocasião.
O seu diálogo vivo e até, por vezes, ligeiramente impaciente, mantivemo-lo tal e qual — as palavras ganham maior valor quando inseridas no seu contexto emocional, pois adquirem a dimensão exacta da vivência c o sublinhado dos sentimentos.
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Poucos dias antes um jornal do Rio de Janeiro tinha publicado uma entrevista com certo industrial português julgado anos antes num processo escandaloso movido por pessoas da sua família, em que se considerava perseguido político, alegando que o chefe do Governo consentira num julgamento que o Dr. Salazar nunca teria permitido.
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