ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

Kennedy, a crise dos mísseis e a política externa portuguesa

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Em Outubro de 1962, em plena crise dos mísseis, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português Franco Nogueira encontra-se em Washington e é recebido, primeiro, pelo Secretário de Estado americano Dean Rusk e, posteriormente, pelo presidente J. F. Kennedy. Do livro Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I Volume.

OPUS CITATUM
Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I VolumeFranco NogueiraEditorial Intervenção, 1979págs. 176 – 183

Washington, 24 de Outubro de 1962 — No Departamento de Estado, desde a entrada, pelos corredores, até ao terraço do andar superior, o ambiente é de crise e drama. Ontem à tarde, o presidente Kennedy enviou um ultimato público a Kruschev e ordenou o bloqueio de Cuba pela esquadra americana. Dean Rusk está obviamente preocupado. Declara que o problema cubano absorve todas as suas atenções, mas não quis apesar disso deixar de me ver. Comunica-me que serei recebido pelo presidente Kennedy ao princípio da tarde. E depois, sem transicção, entra na análise da grave tensão existente com a União Soviética. A situação é mais do que séria, é quase desesperada, afirma Rusk, e neste momento nada se pode prever. E o secretário de Estado, assumindo uma atitude de quase aflição, interpõe de súbito: como eu iria avistar-me com o presidente, poderia dizer-lhe que em virtude da actual emergência os Estados Unidos poderiam contar com o uso sem restricções da base dos Açores. «Diga-lhe isso, expontaneamente; seria para ele uma preocupação a menos». Replico ao secretário de Estado que decerto não esperaria que eu fizesse uma tal afirmação precipitadamente, e sem obter garantias e compensações apropriadas; e além disso tratava-se de um problema de Governo que eu de nenhum modo podia resolver sozinho. Rusk insiste: a política americana com Portugal já havia mudado muito; «muitas coisas» haviam feito em nosso favor; mais ainda fariam; e não lhe parecia excessivo que, numa situação de tamanho risco como a actual, prestássemos esse serviço aos Estados Unidos. «Não tenha ilusões», acentua Rusk, «a emergência é gravíssima». Encaro o secretário de Estado muito firme e seriamente, conservo-me em silêncio por uns segundos, ao que creio com absoluta impassibilidade; e depois digo: «Há mais de dois anos que nós, portugueses, vivemos em permanente emergência, e não me parece que alguns dos nossos aliados se perturbem muito com o facto». Rusk deixa-me entregue a alguns funcionários americanos, que estão próximos, e afasta-se com Theotónio Pereira. (Este diz-me depois que Rusk tentou convencê-lo a persuadir-me que fizesse ao presidente a declaração sobre o uso da base dos Açores.)

Abandonamos o terraço do Departamento de Estado, e passamos a uma pequena sala em que o Secretário de Estado costuma oferecer «almoços de trabalho». Mal nos sentámos à mesa, Rusk começa a expor a teoria do Governo americano, quanto à situação criada a propósito de Cuba. Nos últimos tempos, os Estados Unidos notaram um progressivo endurecimento da política russa, e este reflectia-se em todos os problemas pendentes, particularmente o de Berlim. Pensam os responsáveis americanos que nos conselhos do Kremlin deve estar a processar-se uma profunda revisão da política externa soviética; e presumem que essa revisão deve ser motivada pelo facto de a Rússia verificar a falência da sua política de coexistência. Esta, segundo Rusk, somente tem acarretado prejuízos para a União Soviética. E o Governo de Moscovo deve ter querido experimentar e avaliar a reacção dos Estados Unidos perante qualquer modificação do equilíbrio de poderes actual. Ora a implantação de bases atómicas soviéticas em Cuba, e a existência de foguetões ou mísseis atómicos na ilha (e os Estados Unidos recolheram documentação abundante que comprova uma coisa e outra) teriam precisamente o efeito de alterar, com grande desfavor para os Estados Unidos, o actual equilíbrio. Deste modo, o Governo americano não o pode consentir. E se a decisão que tomou parece ter um carácter súbito, e tem, o facto deve-se à circunstância de se haver apurado ontem que alguns dos engenhos atómicos instalados pelos russos poderiam tornar-se operacionais em 24 horas. Rusk conclui por afirmar que a presente crise não está relacionada com as próximas eleições americanas, nem constitui um problema exclusivo dos Estados Unidos, mas é global, pois se trata de saber se os países podem ou não conservar a sua independência em face do expansionismo soviético. E, no momento em que fala, os Estados Unidos não sabiam ainda as reacções de Moscovo, mas estavam preparados para o pior.

Rusk dá à sua exposição um tom de extrema gravidade. Todos os quatro ou cinco funcionários americanos presentes ao almoço mostram um semblante sombrio, dir-se-ia tétrico. Para o fim do almoço, alguém traz ao secretário de Estado um papel, com aspecto de ser um telegrama. Rusk lê, concentrado. E no silêncio espesso que paira de repente, o secretário de Estado informa que os navios russos continuam a navegar para Cuba, não dando sinais de alteração de rumo; e, se mantiverem este, em 24 horas estão à vista da esquadra americana, que tem ordens para os afundar. E percorrendo com o olhar todos à mesa, o secretário de Estado diz: «Meus senhores, dentro de 24 horas poderemos estar em guerra com a União Soviética».

Ocorre-me perguntar a Rusk porque não submete imediatamente o problema ao Conselho de Segurança. O secretário de Estado sorri-se com tristeza amarga, e replica que este é um tipo de problema que não pode ser apresentado às Nações Unidas, e que tratando-se de questões vitais os países não podem submeter-se àquela organização. E com desportivismo afectuoso acrescenta: «Quem me diria que eu havia de dizer isto a si, que há anos repete a mesma teoria?» Por meu lado, havendo suscitado o ponto e perante a confissão de Rusk, não insisto, nem exploro no momento dramático a resposta do secretário de Estado. Limito-me a concordar, com um gesto de compreensão.

Levantamo-nos da mesa. Reparo que durante o almoço o secretário de Estado fumou um maço de cigarros inteiro.

Passamos a uma sala adjacente, e avançam dois funcionários sobraçando grandes rectângulos de cartão, que depõem em cadeiras. São as últimas fotografias aéreas tomadas pela aviação americana sobre Cuba. Todos nos debruçamos, e as fotografias são impressionantes pela sua nitidez. Os peritos explicam os pormenores: as rampas de lançamento, os mísseis, os depósitos de peças, etc. Não se podendo duvidar da sua autenticidade, as fotografias são convincentes. Rusk está suficientemente calmo para agradecer aos peritos as suas explicações, e eu agradeço as respostas às perguntas que formulei.

Rusk pede desculpa de não tratar comigo de problemas bilaterais: não lho permite a pressão dos acontecimentos em curso. Esperava que eu o compreendesse. Respondo ao secretário de Estado que entendo perfeitamente, e despeço-me, exprimindo a Rusk os meus desejos que os Estados Unidos saiam vitoriosos da crise.


Washington, 24 de Outubro de 1962 — Encontro na Casa Branca a atmosfera da crise de Cuba: nos funcionários, nas secretárias, pesa uma gravidade silenciosa, um prenúncio de tragédia em que todos se aprestam a participar. Não foge o presidente ao ambiente geral, e o drama está patente nas suas feições: face vincada, um modo alheado e vago, como se entre o seu ser e realidade houvesse uma barreira mental intransponível, cansaço visível de noites talvez em claro, obsessão centrada num só ponto, palidez quase mórbida. Por detrás de tudo, pressente-se um esforço de vontade tensa; aparenta calma, serenidade; impõe a si próprio a manutenção de uma rotina, como se nada de extraordinário estivesse a passar-se: é o chefe que tem consciência de ser o único que, numa crise suprema, não pode perder a cabeça. Kennedy sente que está vergado ao fardo inevitável: tem de ser sua a última palavra; desta dependem a paz ou a guerra, a vida ou a morte de milhões, e não há civismo ou demagogia que encubram esta realidade.

Após a afabilidade de palavras de cortezia, Kennedy reitera o seu desejo de que continuem a ser melhoradas as relações entre os dois países. Lera com atenção os documentos em que definimos a nossa política. Havia decerto divergências entre os dois Governos, mas havia que reduzi-las ao mínimo. Comentei que esse era também o nosso interesse e a nossa intenção; mas nada se podia fazer unilateralmente. Pergunta então o presidente como vejo a situação em África. Traço para o presidente um quadro desenvolvido do nosso ponto de vista, e saliento os perigos políticos, económicos e estratégicos que o Ocidente corre. Sublinha o presidente que os Estados Unidos não têm culpa do movimento anti-colonialista, e que apenas desejavam conservar do lado do Ocidente os chefes africanos moderados. Encaro firmemente Kennedy, e digo: «Acredite, Sr. Presidente, a política dos Estados Unidos apenas favorece os desígnios da União Soviética em África e acabará por contrariar os próprios objectivos americanos». Kennedy fica suspenso, e deixa cair uma frase em tom de quem está a pensar alto: «Sim, admito que talvez possamos estar errados na política que preconizamos. Precisamos de tempo para ver». Observo ao presidente que entretanto muitas destruições se hão-de ter consumado, e que é mais difícil remediar uma situação do que evitá-la.

Há um curto silêncio, e o presidente pergunta se Portugal não poderia fazer uma qualquer declaração, mesmo vaga, e que permitisse depois aos nossos amigos apoiarem-nos. Sim, diz o presidente, os Estados Unidos nada têm contra a política portuguesa, a não ser o facto de um apoio à nossa política poder ser interpretado pelos africanos como significando que os Estados Unidos se opõem ao nacionalismo africano e a qualquer mudança. Aparte isto, os Estados Unidos desejam que se mantenha a influência portuguesa em África. Não, não queriam mais Congos. E acima de tudo era indispensável evitar que a África «caísse nas mãos do comunismo». E repisa: não podem fazer uma declaração? Explico ao presidente essa impossibilidade: a uma declaração vaga seguir-se-ia a exigência de uma declaração precisa; e a uma declaração precisa de intenções para longo prazo seguir-se-ia a exigência de uma declaração para curto prazo; e os Estados Unidos, precisamente pelos mesmos motivos agora invocados, seriam sempre levados a apoiar os nossos adversários, e sempre com o objectivo de conservar do lado do Ocidente os tais chefes moderados de África. Não compreendia o presidente que apenas satisfará os tais chefes moderados quando tiverem sido perdidas em favor deles todas as posições? Talvez então fiquem ao lado dos Estados Unidos (do que eu duvidava); mas então será duvidoso que continuem ao lado dos Estados Unidos os aliados actuais. Se os Estados Unidos conseguirem fazer triunfar a sua política actual, na melhor das hipóteses talvez possam substituir uns aliados por outros, pertencendo a Washington decidir se prefere os actuais, que são seguros e de valor, ou os futuros que são incertos; mas também se pode dar o caso de perderem uns e outros. Quanto a Portugal, eu permitia-me salientar ainda ao presidente a importância estratégica e militar das nossas posições, que a actual política ameaça com prejuízo geral. Eu digo tudo isto de forma que procuro seja muito serena, afável, sem paixão, como quem somente deseja contribuir para esclarecer um amigo em dificuldade. Kennedy escuta em silêncio, sem interromper. Nada refuta, não comenta. Repete: «Sim, talvez possamos estar errados».


Aludo à crise de Cuba, procurando ir ao encontro das preocupações do presidente. Espero que reaja a fundo, com paixão. Mas não. Comenta de maneira alheada: «Aparentemente, os russos esqueceram-se do mar. Não contaram com o bloqueio de uma esquadra.» Mais nada.

Não se trocou uma palavra sobre os Açores.

Desejo ao presidente que os Estados Unidos superem a presente crise, e saiam vitoriosos.

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