Franco Nogueira: Política externa - o que é?
aosA política externa segundo Franco Nogueira — Ministro dos Negócios Estrangeiros português de 1961 a 1969 — no seu livro Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África.
OPUS CITATUM
Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I VolumeFranco NogueiraEditorial Intervenção, 1979págs. IX – XVIIIPolítica externa — o que é? Parece inocente a pergunta, e acaso inútil, porque se supõe a resposta conhecida de todos. Entende-se geralmente, com grande simpleza de espírito, que é a actividade conduzida além fronteiras em conversas ou negociações com governos estrangeiros ou organismos internacionais; e neste contexto acredita-se que se realiza mediante a diversificação e a multiplicidade de embaixadas, ou a deslocação agitada e incessante de personagens. Traduz um sinal desta candura quase infantil o programa de política externa da revolução portuguesa de Abril de 1974, que no fundo se resumia a estabelecer relações diplomáticas com todos os países, sem discriminação. Mas por se terem relações externas não se segue que se tenha uma política externa: aquelas servem para executar esta; e se não existir uma política externa ficam sem conteúdo e desprovidas de sentido as relações externas. E torna-se à pergunta: o que é política externa?
Uma nação é uma realidade. Uma realidade, antes de tudo, para os seus nacionais. Estes têm — ou devem ter — uma visão, uma ideia, um conceito do seu país: têm — ou devem ter — uma imagem do seu passado, um quadro do seu presente, uma perspectiva do seu futuro; e de tudo decorre — ou deve decorrer — uma consciência das suas raízes, dos seus interesses, dos seus meios, dos seus objectivos. Têm — ou devem ter — uma sensação quase física da sua pátria, no espaço e no tempo. Um país é um agregado de mistérios e um sistema de certezas íntimas, partilhadas por todos os nacionais. Política externa é fazer projectar, para lá da fronteira, aquela sensação e aquelas certezas. É impôr a terceiros a realidade nacional, e defendê-la; é agir de modo que terceiros a aceitem, acreditem e vejam como a vêem os próprios nacionais. Política externa é o propósito de conseguir que um consenso nacional se transforme num consenso internacional; é afirmar e fazer respeitar a tipicidade de um grupo humano diferenciado no conjunto das nações. É por isso que em política externa nunca se chega ao fim; jamais se pode dar por concluído o que quer que seja: é uma luta constante.
Uma política externa não pode basear-se nos caprichos, emoções, gostos ou preferências de um homem ou grupo de homens. Não pode tão pouco ser partidária: seria perigo grave transformar em política externa a política de partidos, ainda que todos se arroguem a representação do interesse nacional; ficaria sem continuidade e perderia crédito uma política externa à mercê de uma orientação ideológica do momento e de resultados eleitorais internos. Se uma política externa corresponde, como deve, aos interesses permanentes de uma nação, não pode ser alterada porque no governo de um país se sucede um partido a outro. Sustentada por centenas de governos de diferente matiz, tanto em Portugal como na Inglaterra, subsiste há mais de seiscentos anos a aliança luso-britânica. E é por isso que nos países de governo responsável, onde haja civismo e espírito público, as grandes decisões de política externa são apartidárias, ou multipartidárias, ou bipartidárias, quando o espaço político é ocupado por dois grandes partidos. Foi feita nesta base a adesão dos Estados Unidos ao Pacto do Atlântico. Pode não suceder assim em momentos de crise: neste caso, a política externa, se não possui o apoio das forças partidárias, tem de assentar num consenso amplo da opinião pública; de outro modo fica inquinada por uma fraqueza que lhe é fatal. Temos um exemplo na intervenção americana no Vietname: estavam divididas as forças políticas, estava dividida a opinião pública. Note-se que este fenómeno pode produzir-se mesmo quando uma política externa corresponde, na efectividade das coisas, aos interesses permanentes de um povo; significa o facto que, por um motivo ou outro, se obliterou nesse povo a visão dos seus próprios interesses, e que estes são encarados de vários pontos de vista, e todos contraditórios. E destes pressupostos decorre um outro: uma política externa não pode ser pendular, oscilante nos seus princípios e objectivos, ao sabor de modas ou ideias de cada instante. Porque deve ter em conta os interesses permanentes de um país, tem de encarar os acontecimentos numa perspectiva de longo alcance; não pode deixar-se impressionar por novidades: tem de joeirar o que é efémero do que é duradouro: não pode precipitar-se ingenuamente: e tem de averiguar que forças ou intenções reais se escondem por detrás de propostas ou iniciativas alheias. Há que ter em mente que as iniciativas e sugestões lançadas por governos ou países têm por fim proteger os seus próprios interesses, e não os de outros; mas, para convencer os demais, apresentam-nas sempre em nome de altos ideais e dos mais elevados princípios, para melhor ser disfarçado e oculto o verdadeiro desígnio. De uma forma geral, em política externa e no plano internacional, o que parece, não é.
Vista de um outro ângulo, uma política externa não deve determinar-se por afinidades ideológicas com outros governos. Não só estas são transitórias, como raramente coincidem com afinidades de interesses. Quando um país, em particular uma grande potência, procura transportar para o terreno internacional uma doutrina, está no fundo a dar cobertura ideológica aos seus interesses internacionais; e quando apresenta ao mundo um ideal humanitário, ou social, ou económico, procede assim porque esse ideal serve os seus desígnios próprios. Dizia um famoso político inglês do século XIX: Com razão ou sem ela, antes de tudo o meu país. Estava somente a afirmar que os interesses britânicos não oscilavam pendularmente ao sabor de princípios transitórios, e que tinham prioridade sobre os de terceiros. E tudo isto nos leva a outra conclusão: uma política externa tem de ser independente. Independente na análise dos acontecimentos, no juízo formulado, na decisão tomada. Alguns sustentam que nos tempos modernos nenhum país pode ser independente. Neste particular, como noutros, não há tempos modernos ou antigos. Na diversidade das situações e dos meios de cada época, os povos e os países sempre estiveram em contacto com outros povos e países, numa relação de forças e interesses. Uma nação não é um espaço territorial para além do qual haja o vácuo: o contacto é um imperativo natural. Mas este facto leva-nos precisamente a estabelecer a distinção entre independência e interdependência. Se por aquele motivo a independência absoluta não é viável, já a interdependência é possível. Que se deve entender por interdependência? A faculdade de um povo e um país escolherem o seu lugar na comunidade das nações; o poder de um povo negociar livremente e livremente decidir as suas opções; a capacidade de aceitar uma alternativa e repelir outra; a possibilidade de determinar, por si, aqueles a quem faz e de quem recebe favores, escolhendo uns e outros consoante os seus interesses. Um país pode ver-se compelido a contratar alianças ou a recorrer ao crédito externo. Se não puder escolher os seus aliados, e as alianças lhe forem impostas; se não puder escolher os seus credores e as condições do crédito, mas houver de se submeter a uns credores e às condições que estes lhe ditarem, porque não tem outros credores a que recorrer nem está em situação de discutir condições — esse país não é independente. Pelo contrário, se isso lhe é possível, então esse país é independente, dentro do imperativo natural da interdependência. E para que isto seja viável, há que preencher pelo menos os seguintes requisitos: manter os centros de decisão sempre nas mãos de nacionais seus, que não sejam influenciáveis ou estejam ao serviço de forças ideológicas ou económicas alheias; possuir um mínimo de força militar que possa dissuadir um adversário de uma agressão, ou mesmo de uma ameaça; coesão nacional no que for básico; desafogo económico e financeiro. Se um país consegue sempre ter uma alternativa ou manter sempre aberto mais de um caminho, por este mesmo facto aumenta a sua capacidade de negociação, e portanto a sua capacidade de aceitar apenas os termos que lhe convenham. É no jogo entre interesses alheios contraditórios e em conflito que se situa a independência de um país.
Deste facto decorrem, por sua vez, outras consequências em matéria de política externa. E a primeira é esta: a necessidade de avaliar com rigor os interesses e objectivos alheios e as forças em presença. Essa avaliação não se impõe por igual quanto a todos os países. Tem de ser feita em relação às grandes forças de peso mundial ou que podem exercer uma influência global, e ainda quanto àquelas que, embora mais restritas, podem ter uma influência directa num determinado país. Tomemos Portugal como exemplo. Impõe-se a Portugal saber quais são os interesses e objectivos dos Estados Unidos, ou da União Soviética, ou do Vaticano, ou da China, porque têm repercussões mundiais. Importa a Portugal saber quais são os interesses e objectivos de uma Inglaterra, ou Espanha, ou França, ou Alemanha, ou Brasil, porque se encontram no cruzamento directo de interesses e objectivos portugueses. Mas é mais do que secundário para Portugal apurar com minúcia os interesses e objectivos do Nepal, ou do Burundi, ou das ilhas Maldivas. Podemos ter relações com estes países; mas não são prioritárias, nem sequer no mesmo nível político das que devemos ter com outros, porque as suas linhas de acção não entram nas coordenadas dos interesses portugueses. Assim se entende melhor a distinção entre relações externas e política externa: e não sendo ilimitados os recursos portugueses, há que concentrá-los nos pontos que importam e não dispersá-los por países indiferentes. Mas daquela avaliação resulta outra consequência: a necessidade de distinguir, entre os interesses e objectos alheios, os que são desfavoráveis, e de que um país tem que se defender, e os que são favoráveis, e a que um país deve procurar aliar-se. Deste facto podem resultar situações de extrema complexidade. Tomemos de novo Portugal. Interessa a Portugal conhecer globalmente os objectivos americanos; interessa a Portugal conhecer os objectivos brasileiros; mas os objectivos americanos quanto ao Brasil podem ser contraditórios com os portugueses, como os objectivos brasileiros quanto a Portugal podem ser contraditórios com os americanos. E este exemplo pode multiplicar-se em relação a todos os países que estejam nas coordenadas da política externa portuguesa. Produz-se assim uma rede emaranhada de conflitos de interesses, sucessivos ou simultâneos. Para lhe fazer frente, três factores são indispensáveis: nunca perder de vista as linhas essenciais, porque correspondem aos interesses permanentes; nunca procurar um benefício imediato com sacrifício de uma garantia sólida; nunca assumir compromissos taxativos e imutáveis, ou ilimitados, salvo em reciprocidade. Há que não esquecer, por outro lado, que os demais países e governos se encontram em situações análogas e obedecem aos mesmos princípios. Significa o facto que uma política externa, digna desse nome e para servir interesses nacionais, é qualquer coisa de extremamente complexo, que tem de ter presente o sentido da História, e que não pode confundir-se com uma administração de dia-a-dia, ou com a multiplicidade de embaixadas ou correrias oficiais ou oficiosas de país em país. E daqui a necessidade de um comando central e coordenador, que se não compadece com políticas externas paralelas, ou em nome de partidos. Uma política externa tem de ser nacional.