ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

Franco Nogueira e Dean Rusk

aos

De 4 a 6 de Maio de 1962, Franco Nogueira encontra-se em Atenas para participar na conferência ministerial de Primavera da OTAN, onde, à margem da cimeira, tem oportunidade de conversar longamente com Dean Rusk, secretário de Estado dos EUA.

A conversa incide sobretudo nas queixas que os portugueses têm do comportamento dos americanos e da atitude dúplice destes. São discutidos documentos, fórmulas e assuntos da ordem do dia. Para além disto há uma franca declaração do ministro português ao governante americano que ilustra simultaneamente a desconfiança com que o Governo português via as actividades americanas e a gravidade com que tratava e exigia ser tratado.

OPUS CITATUM
Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I VolumeFranco NogueiraEditorial Intervenção, 1979págs. 102 – 119

Atenas, 5 de Maio de 1962 — Cheguei ontem à Embaixada dos Estados Unidos às 20:30 conforme indicado no convite. Rusk, acompanhado dos seus colaboradores1, acolheu-me com uma boa disposição que pareceu espontânea. Depois das frases de circunstância, a conversa incidiu sobre assuntos indiferentes: as ruínas clássicas de Atenas, o papel das grandes Fundações na protecção à arte, as actividades das Fundação Rockefeller (de que Rusk foi presidente) e Gulbenkian (cujo presidente Rusk conhece) naquele domínio. Toda a conversação foi sempre mantida com vivacidade. Era nítido o desejo ou a esperança de Rusk de que eu tomasse a iniciativa de abordar assuntos políticos. Furtei-me constantemente, lançando sempre no diálogo comentários ou observações sobre os temas que haviam ocorrido. Decorreram assim cerca de trinta minutos.

Rusk fez então uma viragem brusca, e mencionou a visita de Santiago Dantas a Washington. E disse que o ministro brasileiro lhe referira, em síntese, a conversa que tivera comigo em Lisboa. Declarou Rusk que o assunto lhe suscitara o maior interesse: considerava-o de família, em que os Estados Unidos não pretendiam intrometer-se: mas afigurava-se-lhe de grande importância o que Santiago Dantas lhe contara. Confirmei que havia tido uma longa conversa com o chanceler brasileiro durante a paragem deste em Lisboa. Tínhamos trocado pontos de vista sobre matérias de muito interesse para o Brasil e Portugal. Santiago Dantas já me fizera saber que em breve passaria de novo por Lisboa e que desejava continuar as nossas conversas. Eu tinha-lhe respondido que teria nisso muito gosto.

Manifestamente desiludido com a minha resposta, Rusk fez o elogio de Santiago Dantas. Era homem muito inteligente e firme. Em Punta del Este fora o único ministro que iniciara a conferência com umas determinadas ideias e acabara-a exactamente com as mesmas ideias. Concordei no elogio a Santiago Dantas: era um dos maiores advogados do Brasil, inteligente, culto, de exposição muito clara, e além disso de trato agradável e fácil.

Rusk tornou a insistir: do que lhe narrara Santiago Dantas, deduzira um pensamento grandioso, a concepção de uma vasta comunidade lusitana»*, que bem poderia estar destinada a ter considerável relevo na política mundial. Julgara sentir que Santiago Dantas também assim pensava. Comentei que tanto nós como os brasileiros naturalmente desejávamos e esperávamos que a Comunidade luso-brasileira se expandisse e reforçasse, dentro de uma evolução que só seria benéfica para ambos, e que sem dúvida poderia vir a revestir-se de muita importância. Mas sabia ele, Rusk, o que queria dizer a palavra «lusitana»? Pois era o nome antigo da tribo originária — os lusitanos — que formara o núcleo de Portugal. Era curioso que quase todos os países europeus velhos tinham dois nomes: Portugal. Lusitânia: Suíça, Helvética; França, Gália; Grécia, Hélade, etc. Por que seria?

Rusk compreendeu, e não insistiu2. Passava das nove horas. Mudámos para a sala de jantar e sentámo-nos à mesa.

O secretário de Estado tomou de novo a iniciativa. Lera com atenção o discurso do embaixador Theotónio Pereira perante o «Press Club» de Washington. Considerava-o do maior interesse. Usara o Embaixador a frase «autodeterminação interna», ao referir-se a Angola e demais territórios ultramarinos portugueses. Esta terminologia impressionara-o. Representava uma nova tendência da política portuguesa?

Respondi que nunca negáramos a «autodeterminação interna». O embaixador empregara o termo por ser mais inteligível para o público americano. Mas não significava qualquer tendência nova. Constituía precisamente a continuação da nossa política tradicional. O termo, no fundo, correspondia ao que nós designávamos por «autonomia local» ou «descentralização». Era tudo.

Mas o secretário de Estado não se deu por satisfeito. Porque a verdade, sublinhou, é que se nós falássemos de «autodeterminação interna» talvez houvesse então aí um terreno novo a explorar. Que conteúdo ou substância tinha tal «autodeterminação»?

Esclareci Rusk em mais pormenor. Descrevi — acentuando que já lho tinha dito em Oslo e em Washington — em que consistia a nossa «autodeterminação» interna. Depois de lhe ter fornecido pormenores, afirmei-lhe que se tomássemos a verdadeira realidade das coisas, e não a sua aparência, não havia dúvidas de que se poderia dizer que Angola e os outros territórios desfrutavam de muito maior autonomia do que muitos dos novos países supostamente independentes. Simplesmente: a «nossa» autonomia ou autodeterminação não era a das Nações Unidas, não adoptava a mesma demagogia, e por isso não era havida por válida pela Assembleia. E entre o que era sério e o que o não era, os Estados Unidos, pelos motivos já sabidos, preferiam a segunda alternativa.

Rusk pareceu meditar, com ar profundamente concentrado, e voltou a repetir que o discurso do embaixador era de grande significado e importância. E perguntou: não poderia o Governo português elaborar mais aquela noção de «autodeterminação interna» e dar-lhe maior publicidade?

Como Rusk já houvesse tomado várias vezes a iniciativa dos assuntos políticos, e aproveitando aquela pergunta concreta, resolvi então entrar franca e claramente na discussão dos nossos problemas com os Estados Unidos.

Eu não compreendia bem o sentido da pergunta do secretário de Estado. Mas considerava-a mais uma manifestação da técnica que os Estados Unidos haviam adoptado para connosco: aplicar contínua pressão, pedir sempre mais, deixar entrever uma eventual mudança a nosso respeito, mas nunca se mostrarem satisfeitos, exigindo sempre depois de um passo nosso um outro passo mais. Ora eu queria dizer-lhe, muito nitidamente, e muito firmemente, que atingíramos o ponto de saturação, e que eram inúteis novas pressões americanas. E ainda: não estávamos dispostos a deixar-nos tratar dessa maneira, para mais por um Governo que afirmava agir em nome de princípios, mas que na verdade se determinava por razões bem diferentes, e que nada tinham que ver com os princípios apregoados.

O secretário de Estado não fez comentários, mas revelou grande tensão, embora guardando domínio absoluto.

Então Rusk, reagindo por associação de ideias, disse:

«Quero afirmar-lhe uma coisa: o documento que você mostrou a Elbrick, em Lisboa, é falso. Disse-o ao vosso embaixador e repito-lho a si. Fizemos todas as investigações, e não há a menor dúvida: o documento é forjado. Não é a primeira vez que isto nos acontece: terceiros países falsificam documentos para nos deixarem mal colocados perante os nossos amigos. Se você aceitar, estou disposto a mandar a Lisboa um dos maiores peritos americanos, o vice-director do FBI, para com os peritos portugueses examinar o documento».

Repliquei que não tinha dúvidas sobre o convencimento em que Rusk estava acerca da falsidade do documento. Mas não podia também deixar de lhe significar a minha convicção absoluta de que o documento era verdadeiro3. Aliás, outros documentos em nosso poder, e que eu não mostrara a Elbrick, corroboravam aquele. Pensaria na sugestão quanto à ida de um perito a Lisboa. Mas parecia-me, de resto, que tudo isso era inútil. Além dos documentos, havia múltiplos factos, públicos e notórios, e todos comprovavam a hostilidade do Governo americano para com Portugal.

«Que factos?» — perguntou Rusk.

Desdobrei então, em pormenor, todas as acusações contra o Governo americano. Descrevi a actividade do American Committee on Africa, citando nomes, números e factos; e acrescentei que toda essa actividade só era possível com a anuência, senão com a conivência e até estímulo do Governo americano. Rusk replicou que o ACA era uma organização privada sobre que o Governo não tinha poderes. Observei que não me convencia o argumento, sobretudo numa altura em que o presidente dos Estados Unidos encontrava poderes legais, políticos e até policiais para obrigar as maiores empresas siderúrgicas privadas a anularem decisões públicas. Rusk não respondeu, e disse ao Sr. West que tomasse uma nota no sentido de se investigarem as actividades anti-portuguesas do ACA. Continuei, e expus a atitude dos missionários metodistas, entregues a uma verdadeira campanha de ódio e difamação. O Governo americano sabia que os quatro metodistas, que havíamos expulso, estavam culpados; e também sabia que os libertáramos sem julgamento por pressão contínua do Governo dos Estados Unidos, que nos garantira a discrição e o silêncio dos mesmos metodistas, uma vez estes regressados ao seu país. Tínhamos o direito, portanto, de exigir o cumprimento da promessa, e de suspeitar que na base da campanha actual estava mesmo o encorajamento oficial. Rusk respondeu que a Igreja Metodista era muito forte e perigosa, e que o Governo americano não podia tocar-lhe, mesmo com «uma vara de 40 milhas de comprimento», estando convicto de que aquela Igreja não prestaria a mínima atenção a quaisquer reparos ou recomendações que lhe fossem feitas pelo Departamento de Estado. Afirmei que não partilhava de tal opinião, e que em qualquer caso teria sido preferível que isso nos tivesse sido dito antes de nós libertarmos os quatro metodistas, quando era certo que na altura nos fora deixado entrever o contrário. Em qualquer caso, como nos podíamos admirar da campanha dos metodistas, quando o Sr. Stevenson4 acabava de pronunciar na Colgate University, em Março último, um discurso em que compara a nossa acção em Angola com a dos russos na Hungria e em que sugeria que nós apoiamos e praticamos a política do «apartheid». O secretário de Estado contestou que Stevenson houvesse feito aquelas afirmações. Observei que não valia a pena discutirmos: eu tinha no meu hotel uma cópia do discurso, e entregar-lha-ia no dia seguinte, e poderia assim verificar por si mesmo. Rusk disse então que ia fazer-me uma confidência: dera ordens a Stevenson para que, de futuro, submetesse à aprovação do Departamento de Estado todos os discursos em que houvesse alusões individuais a quaisquer países. Comentei que me parecia isso muito bem, mas que para nós chegara tarde a ordem, e que em qualquer caso o Sr. Stevenson era um representante qualificado e responsável do Governo americano, e por isso tornáramos as suas palavras como grave injúria. Mas não se limitavam a estes os nossos motivos de queixa e acusação. Havia este outro, por exemplo: o auxílio americano à UPA. Chefes terroristas eram recebidos nos Estados Unidos, e apoiados, financiados e aconselhados; a UPA recebia armas, transportes, dinheiro e treino das forças da ONU no Congo; e estas eram pagas pelos americanos. Rusk negou. Admitiu que estes compravam à UPA certas informações. Mas o dinheiro que pagaram por estas daria, quando muito, para adquirir uma metralhadora ligeira por mês. Não ocultei o meu cepticismo e afirmei a convicção de que, se o Governo americano quisesse, o terrorismo findaria em 48 horas, e as forças da ONU cessariam todo o auxílio. Rusk voltou a dizer a West que tomasse uma nota sobre este ponto. Continuei. Como podia compreender-se a atitude americana para com os refugiados angolanos no Congo? Os Estados Unidos estavam a mantê-los, quase a obstruir o seu regresso a Angola, e assim proviam os terroristas com partidários e uma massa de recrutamento. Rusk afirmou ignorar o assunto, e mais uma vez convidou West a tomar uma nota. Aludi depois à actividade dos numerosíssimos «correios» diplomáticos americanos em Angola, e que por serem de autêntica espionagem havíamos sido obrigados a suspender. Rusk, com alguma vivacidade, disse que não tínhamos esse direito. Eu admitiria que assim era, mas apenas se ele admitisse que os «correios» não tinham também o direito de ser espiões. Rusk replicou que nos daria garantias a esse respeito. Comentei que nesse caso deixaríamos de limitar o número de «correios». West interpôs que Angola era o único território civilizado na África ao Sul do Saara, e daí que muitos diplomatas americanos quisessem lá ir passar uns dias de férias. Observei que me parecia então justo que o Sr. Stevenson falasse da «civilização» de Angola do alto das tribunas da ONU.

Rusk interrompeu então o curso da conversa. Sem prejuízo de eu continuar a expor outros motivos de queixa, se os tivesse, queria no entanto saber a minha opinião sobre um ponto concreto de táctica nas Nações Unidas. Era este: aquando da resolução sobre Angola, no plenário da Assembleia da ONU, os afro-asiáticos haviam apresentado um projecto de resolução muito violento; a delegação americana, como o embaixador Garin decerto informara, envidara todos os esforços no sentido de moderar a resolução; e nisso despendera, queria-mo assegurar, considerável soma de capital político. A pergunta que desejava fazer-me era esta: achava eu preferível uma resolução moderada ou uma resolução violenta e extremista?

Respondi que não tinha hesitações nesse particular: do nosso ponto de vista, seria muito preferível a aprovação de um texto violento e demagógico. Sob condição, evidentemente, de que os Estados Unidos votassem contra tal texto. Eu reconhecia os esforços moderadores da delegação americana, e disso fôramos oportunamente informados. Mas haviam sido inúteis. Como ele afirmava, os americanos tinham despendido muito capital político junto dos afro-asiáticos, e nenhum capital tinham ganho junto de Portugal: muito pelo contrário. No fundo desagradaram a todos. Além de que não havia nas Nações Unidas resoluções moderadas: as que têm essa aparência constituem apenas uma base de partida para textos extremistas. Por isso lhe repetia: preferíamos uma resolução violenta, no entendimento, é claro, de que os Estados Unidos votariam contra.

Rusk pareceu reflectir.

Mas já que se falara nas Nações Unidas, eu queria por meu lado fazer-lhe uma pergunta: acreditava ele que a Organização, tal como funcionava, poderia manter-se durante muito tempo mais? Respondeu o secretário de Estado com firmeza que «não». Por isso estavam pensando em alterações na estrutura da ONU. Encaravam, por exemplo, o estabelecimento de um Comité Executivo restrito, tendo por missão orientar e controlar a irresponsabilidade da Assembleia. Perguntei se isso implicaria uma reforma da Carta. Indicou que esperava consegui-lo sem que isso se tornasse necessário. E como eu mostrasse o meu cepticismo, e aludisse às ilusões que os americanos pareciam ter sobre a ONU, Rusk disse que me queria transmitir uma confidência. E era esta: há pouco, Gromyko5 dissera-lhe que não estava longe o momento em que os americanos fossem os primeiros a solicitar o estabelecimento da «troika»6. Observei que os russos tinham inteira razão, e que nós próprios já há um ano fazíamos esse prognóstico: ainda haveríamos de ver os americanos a pedir de joelhos a «troika», concluí a rir.

Mas eu ainda tinha mais um motivo de queixa. Tinha mesmo vários, e todos graves. Não queria fatigá-lo, todavia, e apenas aludiria a mais um ponto. Em Oslo, o secretário de Estado tinha vincado a nossa falta de propaganda do caso português nos Estados Unidos. Eu dera-lhe razão. Pois bem: desde então tínhamos feito um esforço imenso, e com bons resultados. Mas a minha queixa era esta: enquanto o Governo americano nos incitava a fazer propaganda nos Estados Unidos, esse mesmo Governo recorria a todos os expedientes para obstruir essa mesma propaganda. Os nossos agentes estavam sujeitos a pressões, e também sabíamos que se exerciam pressões, vindas de muito alto, junto dos orgãos de informação norte-americanos. Afigurava-se-nos isto contraditório e susceptível de levantar as maiores suspeitas no nosso espírito, como havia levantado.

Rusk confirmou a conversa de Oslo sobre este ponto, e disse que era extraordinário o que no espaço de um ano tínhamos feito junto da opinião pública americana. Não havia dúvida de que a atmosfera era inteiramente diversa, e em nosso favor. Mas quanto às pressões ou obstrução do Governo americano junto dos órgãos de informação dos Estados Unidos. negava-os terminantemente. Convidava-me a dar pormenores e factos, e queria dizer-me que, se soubesse que algum funcionário americano agia como eu afirmava, demiti-lo-ia sem hesitar. Citei, entre muitos outros, os casos do Washington Post e da Newsweek, e da N.B.C.: e quanto a nomes, alguns poderia mencionar, mas reservara-me para o fazer em ensejo ulterior. Entretanto, desejava dizer-lhe que me parecia espantoso que um Governo responsável, como o dos Estados Unidos, se determinasse por pura propaganda e não pelos relatos oficiais e verídicos dos seus agentes locais, devidamente acreditados. Isto deixava-nos em desvantagem, visto que, administrando-nos melhor do que a Índia, não despendíamos na América os milhões que aquela ali malbaratava, aliás à custa do contribuinte americano, e por isso os Estados Unidos davam mais razão à União Indiana do que a nós.

O secretário de Estado voltou a afirmar o êxito da nossa campanha, e aludiu ao recente relatório da OIT para o considerar um sucesso. Informei-o de que havíamos solicitado à Organização Mundial da Saúde um estudo €investigação análoga nos nossos territórios, e que esperávamos dispor em breve de mais um relatório favorável, de fonte independente e insuspeita. Rusk comentou que a ideia lhe parecia excelente, e acrescentou que no forneceria uma lista de entidades e organizações no Estados Unidos, a que seria útil nós enviarmos aqueles relatórios e outros documentos sobre a nossa política ultramarina. Respondi-lhe que, desde que nessa lista não estivesse incluída a Quarta Comissão7, certamente a aproveitaríamos, e ficava-lhe muito grato se ma enviasse com brevidade.

Fazendo uma viragem, Rusk perguntou qual era no momento a situação em Angola. Narrei em pormenor as condições actuais e voltei a aludir ao auxílio da ONU e à responsabilidade americana no caso. Parecia-me que só por si a mudança da situação em Angola justificaria uma nova política americana. Mas esta não se determinava por princípios. A pressão dos Estados Unidos sobre a Holanda, a propósito da Nova Guiné, era reveladora, e contrária aos próprios princípios que Estados Unidos nos pretendiam convencer que defendiam. Rusk disse que os holandeses não dispunham de força militar para se manterem. Observei que o problema da força não devia estar em causa para determinar a atitude americana, e que por nossa parte tínhamos provado a nossa capacidade militar e política de dominar a situação. Mas eu via que a política americana persistia na mesma linha. Pois queria dizer-lhe que, a continuarem assim, acabariam sem amigos nem velhos nem novos. E eu estava apenas repetindo o que toda a gente sentia em todo o Mundo. Rusk confessou que já tinha ouvido o mesmo comentário de outros, designadamente dos franceses. Mas tornando à situação em Angola, o secretário de Estado manifestou o parecer de que os chefes terroristas perdiam muito terreno. Observei que não sabia a posição exacta, mas segundo as nossas informações haviam cometido milhares de assassinatos e decerto também tinham sofrido muitos crimes dos seus inimigos. Rusk disse que estava a par destes actos, que julgava verídicos. Concluí por dizer que me parecia ter feito mau negócio quem tivesse baseado os seus cálculos na UPA: «apostara no cavalo errado». Rusk concordou.

Já que eu falara de «apostas», Rusk queria perguntar-me uma coisa: se eu tivesse de «apostar», apostaria em que a princesa Sofia seria um dia rainha de Espanha? Repliquei-lhe a rir que era republicano, e que sentia dificuldade em apostar a favor da monarquia. Mas, mesmo em caso contrário, não arriscaria o meu dinheiro. Rusk quis então saber como via eu a situação em Espanha, e qual seria o futuro sucessor do general Franco. Respondi não ter elementos absolutamente seguros: mas julgava que, no caso do desaparecimento do Generalíssimo por morte ou doença grave, seria escolhido um elemento militar de prestígio, e já ouvira mesmo mencionar o nome do general Muñoz Grandes.

Encerrado este parêntesis, Rusk tornou às Nações Unidas. Que havia quanto aos vários Comités que se ocupavam das coisas portuguesas? Referi a actividade de cada um, e descrevi as respostas que lhes temos dado. Rusk comentou que conhecia as nossas respostas, e que estas, pela sua argumentação, astúcia e habilidade, eram o produto de 800 anos de diplomacia.

Assumiu então o secretário de Estado um aspecto preocupado e grave, e perguntou:

«Depois de tudo o que me disse, o que pensa você do Governo americano e das nossas intenções a vosso respeito?»

Encarei-o bem de frente, e com a maior firmeza e gravidade, respondi-lhe:

«Sinto ter de lhe dizer que perdemos por completo a confiança no actual Governo americano e na sua boa-fé, e estamos convictos de que, dentro da política imperialista americana na busca de mercados e matérias-primas, o Governo americano deseja expulsar-nos da África tão depressa quanto possível».

Ao ouvir estas palavras, Rusk pareceu cair em profunda meditação. Não reagiu, nem contestou. Kohler interpôs a observação de que a acusação de imperialismo era em geral dirigida aos russos, e que estes é que disso acusavam os americanos. Rusk observou que já ouvira o mesmo aos franceses. Comentei que tanto num caso como noutro as acusações eram fundamentadas, porque os extremos acabam sempre por se tocar.

Como quem se recorda de súbito de um pormenor, o secretário de Estado perguntou-me que objecções tinha eu em encontrar-me com Wachuku, ministro dos Estrangeiros da Nigéria, e dizia-me isto porque aquele, já por mais de uma vez, manifestara esse desejo. Disse que não tinha por minha parte quaisquer objecções, e que igual informação nos chegara já €dos ingleses. De resto, tudo isto me parecia contraditório: não recusara a Nigéria estabelecer relações diplomáticas connosco e não recusara também receber o embaixador de Portugal? Para mais, a última vez que estivera um momento com Wachuku8, na ONU, este tinha o aspecto de quem me queria assassinar. Mas não tinha objecções a um encontro, apesar disso, embora não compreendesse bem a sua utilidade ou finalidade.

Rusk não fez comentários.

Sentia-se que a conversa estava terminada. Afastando-se da mesa, como quem se prepara para se levantar, o secretário de Estado perguntou de chofre:

«E quanto às negociações sobre a base, que fazemos?»

«Qual base?» — inquiri muito naturalmente.

«Mas a base dos Açores, é claro. Convém-lhes que iniciemos imediatamente as negociações para a renovação do acordo ou querem deixá-las para mais tarde?»

«Parece-me que compete à parte interessada decidir.»

Rusk disse que ambos os países estavam interessados. Ou não era assim? Respondi que o secretário de Estado estava pondo nas minhas palavras uma interpretação que as mesmas não comportaram. Em qualquer caso, continuou Rusk, daria em breve instruções a Elbrick para levantar o assunto em Lisboa. Concluí que aguardaria a diligência de Elbrick.

Erguemo-nos da mesa, passámos a outra sala, e depois de algumas palavras de agradecimento e cortesia, despedi-me. Era cerca da meia-noite.

Hoje, na sala das sessões do Conselho da NATO, como eu procurasse Rusk para lhe reiterar os meus agradecimentos pelo jantar da véspera, o secretário de Estado, muito vivamente, disse-me que era indispensável restabelecer o diálogo e restaurar a confiança entre os dois Governos. Repliquei que, no que eu dissera na véspera, nada havia de pessoal. Compreendera-o perfeitamente, e por isso mesmo o caso era grave, visto traduzir uma desconfiança entre Governos. Concordei, e observei que só em face de factos novos se poderia, por nossa parte, voltar a confiar. Rusk concluiu afirmando que se ia ocupar do assunto prontamente, e que ia examinar tudo o que pudesse ter criado o presente mal-estar, para o desfazer. Despedimo-nos, tanto nesta ocasião como mais tarde à partida de Atenas, nos melhores termos pessoais.


  1. Kohler e West, do Departamento de Estado norte-americano.

  2. Convirá explicar que esta recusa ou reserva em discutir com o secretário de Estado norte-americano a ideia de uma Comunidade luso-brasileira se fundava no facto de os Estados Unidos se oporem, na realidade, a qualquer entendimento luso-brasileiro que englobasse a África Portuguesa, e contrariarem no Rio qualquer política nesse sentido.

  3. Dean Rusk sempre me pareceu homem de boa fé e íntegro, e estaria convicto da falsidade do documento. Mas este era realmente autêntico, como acontecimentos e até confissões ulteriores dos interessados vieram comprovar.

  4. Adlai Stevenson, membro destacado do Partido Democrático americano. Antigo candidato à Presidência dos Estados Unidos.

  5. Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética.

  6. Sugestão russa no sentido de a ONU ser dirigida por três secretários-gerais, cada um representando uma orientação política diferente.

  7. Alusão à Quarta comissão das Nações Unidas, onde se realizavam os debates anticolonialistas.

  8. Tive ulteriormente um longo encontro com Wachuku, em Nova York, no Waldorf-Astoria. Homem extremamente vaidoso e incapaz de conduzir qualquer discussão séria.

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