ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

Faltou-me coragem para destruir Portugal

aos

Terceira entrevista a Marcello Caetano, do livro «O 25 de Abril e o Ultramar».

OPUS CITATUM
O 25 de Abril e o Ultramar — três entrevistas e alguns documentosMarcello CaetanoEditorial Verbo, 1976págs. 37 – 82

Jornalista — Professor, chegou a altura de voltarmos a conversar sobre a sua política quanto ao ultramar português e a atitude tomada no dia 25 de Abril…

Marcello Caetano — Outra vez? Valerá realmente a pena? Aquilo que lhe disse há um ano e tal não foi tomado em consideração pelos que posteriormente trataram desses assuntos; nem sequer, em muitos casos, o que logo em 1974 escrevi no meu livro Depoimento.

J. — As entrevistas de há um ano tiveram fraca difusão. E depois delas o professor sabe certamente que lhe têm voltado a ser feitas graves acusações.

M.C. — Mais insinuações do que acusações. Algumas mesmo com o aspecto de manifestações de verdadeira paranóia, em que um ódio cego não hesita em inventar factos que se não deram e frases que se não disseram, em deturpar outros, em fazer gratuitamente processo de intenções. É revoltante, mas não descerei a discutir com gente de tão baixo estofo moral.

J. — Mas há outras pessoas que até foram dos seus mais próximos colaboradores…

M.C. — Infelizmente há. Olhe, quando publiquei o meu Depoimento, por sinal um livro que a maior parte das pessoas se limitou a ler em diagonal e por isso aprecia mal, houve um jornal de Lisboa que, em parangonas, intitulou a crítica dele da seguinte forma: «Marcello Caetano defende obstinadamente os seus colaboradores.» E é verdade. Tirando aqueles que se bandearam com a revolução, eu sempre os defendi, encobrindo queixas que deles tivesse e não me furtando a assumir responsabilidades. Até porque julgo deplorável o espectáculo da divisão de pessoas que nesta altura deviam estar unidas.

J. — Mas nem todos os colaboradores lhe pagam na mesma moeda…

M.C. — Sei a quem se quer referir. E confesso que é um caso para mim muito doloroso. Só posso explicá-lo (sem que o justifique) pelo abalo psíquico sofrido em consequência de muitos meses de prisão injusta e, depois, por influências perniciosas a que a pessoa não pôde furtar-se. Lastimo essa pessoa sinceramente. Porque em certas afirmações que faz, sobretudo a respeito da minha conduta no dia 25 de Abril, não procede de boa-fé. Suspeito, aliás, que a inimigos meus inspirou muitas das insídias por eles produzidas. Mas, repito, não estou disposto a estabelecer polémica.

J. — Compreendo que não queira responder a A ou a B. Mas o senhor tem responsabilidades perante o povo português e perante a História. Deve um esclarecimento a muitos portugueses que acreditaram em si. E deve dar o seu testemunho para a História.

M.C. — A História… Talvez um dia haja um historiador objectivo e imparcial que a escreva analisando serenamente tantos documentos que deixei do meu Governo. Por sinal que deveriam ser publicadas as actas do Conselho Superior de Defesa Nacional. Porque não? E as do Conselho de Ministros para os Assuntos Económicos, também. Para se fazer o processo da minha «indecisão» e das responsabilidades de cada um. Mas será que algum dia se escreverá uma história imparcial?

J. — Temos de esperar que sim…

M.C. — Já não sei… de qualquer maneira isso de falar para a História não me convence…

J. — Mas há os amigos que ainda tem em Portugal…

M.C. — Esse argumento já me toca. Sobretudo a referência que fez há pouco a tantas pessoas que acreditaram em mim. E só tal ideia me faz vencer a repugnância em falar outra vez de assuntos que já procurei esclarecer e explicar.

J. — Vamos então à conversa?

M.C. — … que remédio!

J. — O senhor é acusado de ter comprometido a defesa do Ultramar com a política de «aberturas» que adoptou ao ser chamado ao Governo. Mas os liberais acham que não a conduziu com o vigor necessário, dando mostras de uma irresolução que nem resolveu o problema político interno nem encaminhou para o termo a questão do Ultramar.

M.C. — Tenho reparado, na verdade, que é moda agora dizer que eu era irresoluto. Se essa é ou não a minha maneira de ser podem atestá-lo as dezenas ou centenas de pessoas que ao longo da vida trataram comigo. Não me compete a mim julgar-me. Mas a minha impressão é de que certos indivíduos tomam por característica da personalidade o que era apenas cautela ou prudência em relação às sugestões, às propostas ou aos desejos deles. Eu tinha de decidir assuntos muito graves, carecendo de ponderação, e não podia andar a reboque dos desejos de cada um. Daí que para esses sujeitos eu fosse um irresoluto…

J. — Mas nas grandes questões nacionais o professor tinha ou não um projecto que seguisse?

M.C. — Claro que sim. Aí o que essas pessoas chamam a minha irresolução era a resolução de não fazer asneiras. Por exemplo: na política interna como na ultramarina a minha resolução era a de não perder o controle de qualquer evolução que promovesse. Por isso queria que a liberalização interna se processasse gradualmente, em passos lentos, e sem hesitar em travá-la quando verificasse que pelas «aberturas» consentidas passavam logo todos os elementos subversivos, perante a passividade ou a intimidação dos que deveriam combatê-los no campo dos princípios e da acção política. Quando me incitavam a dar uma volta súbita no regime para o transformar numa democracia à moda ocidental, eu respondia o que respondi a Alçada Baptista e vem a págs. 67 das Conversas com Marcello Caetano: «Quais as consequências imediatas que daí adviriam? Não tenho dúvida de que uma onda de desordem, subversão e anarquia em pouco tempo tomaria conta da sociedade portuguesa…» Estava errado?

J. — Bem, não sei se noutras condições…

M.C. — Quais? As condições em que se actuava eram as existentes na sociedade portuguesa e a que nessas Conversas faço referência, bem diferentes das que se verificaram anos depois na Espanha, por exemplo (e veremos o que vai acontecer por lá…). Eram as condições que subsistiam em 24 de Abril de 1974…

J. — No livro Liberdade para Portugal, publicado em vários países da Europa, Mário Soares diz, a propósito da inevitabilidade da descolonização nos termos em que foi feita, que «a cega obstinação salazarista, prolongada sem coragem por Marcello Caetano, levou a resistência portuguesa até aos limites do possível». Que lhe parece esta afirmação?

Marcello Caetano fica silencioso alguns momentos. Vê-se que procura conter-se. E por fim responde:

M.C. — Como vê, sou acusado de ser resoluto, de ser perseverante na defesa do Ultramar. E quando se diz que não tive coragem para a abandonar, é verdade. Faltou-me coragem para, sem que o povo português o decidisse, entregar o Ultramar aos movimentos subversivos que actuaram por conta de imperialismos estrangeiros. Faltou-me coragem para desamparar os portugueses, pretos e brancos, que no Ultramar viviam a sua vida e possuíam os seus haveres confiados na protecção da bandeira verde-rubra. Faltou-me coragem para, sem mandato da História nem da Nação, destruir Portugal. Porque para tudo isso era preciso ter muita coragem.

J. — De qualquer modo tinha de procurar-se uma saída. Não bastava resistir por resistir…

M.C. — Sim. Mas falemos ainda de coragem. Tive a coragem de, em 1969, contra a vontade de muita gente, proceder por métodos democráticos submetendo a questão do Ultramar à discussão e aos votos do eleitorado, numa eleição controlada pela presença nas mesas eleitorais dos delegados dos grupos concorrentes. Tive a coragem de me deslocar à Guiné, a Angola e a Moçambique para pessoalmente me inteirar da gravidade da situação e auscultar a opinião das populações. E de outras coisas… Claro que, como expliquei em entrevistas anteriores, a solução do problema do ultramar português não dependia só de Portugal, porque se havia criado um condicionalismo externo a que era difícil, para não dizer impossível, fugir. Mesmo internamente, a opinião pública portuguesa tinha de ser esclarecida e orientada para aceitar a solução que se encontrasse. Eu procurei uma solução portuguesa — insisto bem: portuguesa — que fosse aceitável pelos interlocutores estrangeiros válidos e, enquanto buscava torná-la viável internacionalmente, ia-a pondo em prática a partir da revisão constitucional de 1970.

J. — A autonomia progressiva e participada?

M.C. — Sim. Apertado pelas moções das Nações Unidas e atacado por uma violenta campanha internacional, o Governo português tinha de escolher entre a capitulação, nos termos em que após o 25 de Abril se veio a cair, e a proposta, a defesa e a construção de uma solução que pudesse apresentar ao Mundo como a melhor. Essa solução era a evolução rápida de sociedades multirraciais a caminho da independência formando Estados onde todos tivessem lugar sem distinção de raça ou de cor.

J. — Os novos Brasis?

M.C. — A frase é antiga, não tem direitos de autor e lembro-me que o cardeal Cerejeira foi censurado por proferi-la por ocasião da sua visita a Moçambique em 1944. Mas é expressiva e sobretudo era apta para circular nos meios internacionais. Eu quis incluí-la na descrição do projecto de Governo que fiz no discurso proferido na Assembleia Nacional dois meses depois de tomar posse, em 27 de Novembro de 1968. Li a minuta do discurso a um grupo de ministros e dirigentes políticos e essa frase causou escândalo nalguns. O doutor Franco Nogueira pediu-me, quase de mãos postas, que a suprimisse. Surpreendido pela reacção acedi em cortá-la. E apercebi-me de que a política de integração se tinha transformado em matéria de fé, criara certa mística, e só lentamente seria possível chamar as pessoas à razão, mostrar que era um erro, e levar os que nela acreditavam a aceitar outro caminho.

J. — Mas o professor está realmente convencido de que era um erro?

M.C. — Sempre estive e nunca o ocultei. Aliás, ela só foi posta parcialmente em execução no domínio económico e aí os resultados foram as dificuldades de industrialização das províncias ultramarinas e a criação do grave problema dos atrasados na transferência do dinheiro do Ultramar para a Metrópole. Porque nos outros planos a integração foi sobretudo tema de retórica e pouco mais.

J. — Ainda hoje, porém, há quem considere que todos os males resultaram da mudança de orientação que o senhor operou…

M.C. — Sim. Para certas pessoas, Ultramar e integração identificam-se. De modo que abandono da política de integração seria sinónimo de abandono do Ultramar. Promover a médio ou a longo prazo a independência ou a autonomia das províncias ultramarinas assegurando a permanência da sua lusitanidade seria abandono. A única fórmula patriótica era apertar cada vez mais possessivamente os laços das províncias à Metrópole, prendê-las bem, segurá-las com força…

J. — E não seria?

M.C. — Não. A História diz-nos que a vocação dos antigos territórios coloniais é a independência política. E mesmo quando essa não fosse a lição do passado, estava claro que o mundo contemporâneo não admitia outra evolução. Na altura em que tomei conta do Poder, em 1968, o dilema estava criado: ou tentarmos fazer aceitar uma solução, por nós formulada e conduzida, de autonomia progressiva de sociedades cuja estrutura populacional se conservasse, ou rendermo-nos às injunções das Nações Unidas que, como se viu, levariam a regimes racistas negros com destruição da obra realizada pelos Portugueses. Optei pelo primeiro termo: não me parece — e o que se passou depois demonstra-o bem — que pudesse fazer outra coisa.

J. — Enquanto o Governo procurava fazer vingar uma solução política, mantinha-se, pois, o esforço militar. Mas este foi levado, diz-se, ao extremo limite do possível…

M.C. — As Forças Armadas têm de ser o instrumento de uma política nacional. E por definição devem ser essencialmente obedientes. A política nacional estava em curso: às Forças Armadas só cumpria desempenharem-se das missões de que eram incumbidas por quem de direito. Não estavam, em 1974, vencidas, esgotadas ou desarticuladas. O principal mérito do livro dos quatro generais intitulado A Vitória Traída não é, quanto a mim, provar que as Forças Armadas nessa data estavam vitoriosas, mas sim que se encontravam aptas a desempenhar-se das suas missões.

J. — Alguns generais queixam-se, porém, de que o Governo de Lisboa não atendia integralmente os seus pedidos e até de que nem sempre teve a necessária energia de decisões…

M.C. — Vamos por partes. Queixas de generais em campanha por os governantes não lhes darem tudo quanto pedem e no momento que desejam, sempre as houve. Lembro-me de, há anos, ler a biografia de um dos generais americanos que comandaram a ofensiva aliada na Europa no final da guerra de 1940, creio que era o general Patton, e de lá encontrar a notícia das lutas do general com os seus superiores por não lhe satisfazerem a tempo e horas as requisições que fazia para manter e movimentar o seu exército. Em certa altura, para continuar a avançar sobre Praga com as colunas motorizadas, só contava com a gasolina que conquistava ao inimigo e aquela que os seus soldados roubaram aos exércitos aliados que combatiam nos seus flancos… No nosso caso, cada general cuidava das suas necessidades logísticas e olhava para as operações que lhe parecia poderem ser decisivas. Eu instituí a prática das reuniões frequentes do Conselho Superior de Defesa Nacional, fazendo comparecer nelas os comandantes-chefes para exporem os seus problemas e planos e ouvirem a discussão deles. Mesmo assim, um ou outro nunca compreendeu que o Governo tinha de atender simultaneamente a três teatros de operações militares, à frente interna metropolitana e à dificílima frente internacional, onde eu costumava dizer que defrontava a terceira guerra mundial: todos contra nós, mais ou menos ostensivamente, porque mesmo os que se diziam amigos tinham de ser a cada passo esclarecidos e atraídos. O Governo tinha de repartir os recursos financeiros nacionais de modo a atender às necessidades militares sem comprometer o fomento interno, a política de bem-estar social, a solidez das finanças e da moeda. Ora, quando penso em como tudo isto se conseguia, não posso deixar de verberar a injustiça de certas críticas fáceis. Tanto mais que nada acontecia por acaso, e o que se ia fazendo resultava de muito trabalho, muito estudo, muita paciência e de muita resolução também.

J. — Não houve um político francês que disse ser a guerra uma coisa demasiado séria para ser feita por generais?

M.C. — já tenho ouvido essa boutade, decerto o que esse político (creio ter sido Clemenceau) queria dizer era que a guerra não são só as operações militares, mas toda a movimentação política, financeira, económica, diplomática, de que o êxito ou a eficácia dessas operações dependem.

J. — Diz-se que justamente o Governo fraquejou na preparação psicológica do povo português e em especial da juventude.

M.C. — Fiz tudo quanto podia no sentido de esclarecer o povo português e de sustentar o ânimo da defesa. E quanto à juventude também se fez quanto se pôde, e o próprio Conselho Superior de Defesa Nacional criou uma comissão interministerial que actuou bastante nesse campo. Mas, meu caro senhor, quando uma sociedade entra em dissolução não há governante nem doutrina que lhe valha. E as pessoas já se esqueceram que durante o meu Governo assisti ao espectáculo de uma burguesia a desmoronar-se a partir das suas bases morais, com uma Igreja em crise, meios de comunicação cada vez mais infiltrados por elementos esquerdistas e agitação académica para cuja repressão o Governo nem sempre tinha o apoio das famílias dos estudantes e dos professores. A revolução que veio em 1974 estava há muito a trabalhar nos espíritos e surgiu como onda de fundo, é preciso não esquecer.

J. — E quanto à debilidade das decisões políticas de que dependiam certas operações militares?

M.C. — Chegaram-me aos ouvidos, depois do 25 de Abril, rumores de certas acusações que corriam entre as pessoas que de Moçambique foram para a África do Sul: de que eu não deixava as guarnições tomar a iniciativa de atacar e só lhes permitia a defesa, que proibira uma operação aérea sobre a Tanzânia destinada a destruir rampas de lançamento de mísseis, que não consenti no estabelecimento de uma grande base aeronaval em Nacala para defesa da África austral…

J. — Tudo?

M.C. — Tudo. Está claro que se os generais perguntavam ao Governo se podiam invadir territórios estrangeiros ou bombardeá-los a resposta tinha de ser negativa, porque, no plano internacional, uma das nossas razões era o respeito do Direito. As forças portuguesas só estavam autorizadas a penetrar em território estrangeiro quando perseguissem guerrilhas a partir do território português. Os bombardeamentos aéreos de posições inimigas em terra estrangeira tiveram lugar por vezes, por iniciativa dos comandos locais, e nalguns casos bastante trabalho nos deram depois nas Nações Unidas. Mas então tínhamos de aguentar-nos…

J. — Foram esses escrúpulos jurídicos que impediram o Governo de usar a «maneira forte» contra a Zâmbia, em cujo território se acoitaram as guerrilhas antiportuguesas?

M.C. — Não fale em escrúpulos jurídicos. Já chamei a atenção para a circunstância de Portugal ter de fazer frente a uma campanha internacional de grande envergadura anualmente concretizada nos debates e moções da Assembleia das Nações Unidas. Ora, nós tínhamos o dever de assegurar as comunicações entre a Zâmbia, país interior, e o mar. E no caso não estava só interessado esse país africano, mas estavam todos os seus fornecedores e os seus clientes, sobretudo os países que necessitavam do cobre que produzia.

J. — De modo que o Governo temia forte reacção internacional contra o corte das comunicações com a Zâmbia…

M.C. — Não se trata de mera hipótese. Mais de uma vez, para fazer sentir à Zâmbia a sua dependência, dificultámos os transportes ferroviários a partir dos portos da Beira ou do Lobito. Em certa ocasião, em que houve uma sabotagem da linha férrea feita manifestamente por um comando vindo da Zâmbia, prolongámos a reparação da avaria interrompendo o tráfego por duas ou três semanas. Viu-se então como a medida era uma faca de dois gumes. O porto da Beira congestionou-se, com os cais e armazéns repletos de mercadorias e os terminais ferroviários cheios de vagões parados. Os prejuízos acumulavam-se em cifras cada vez maiores. Chegavam a Lisboa clamores de todo o lado, representações de governos amigos, exposições de carregadores prejudicados, um inferno! Kaunda percebeu o que já sabia: que a economia da Zâmbia estava em grande parte nas nossas mãos. Mas também viu que o bloqueio nos feria fundo enquanto ele recorria ao porto de Dar-es-Salam e aos bons ofícios da Rodésia e da África do Sul, com quem nunca conseguimos nestas acções concertar uma conduta comum.

J. — Ouvi dizer que o chefe do Governo da Zâmbia, o senhor Kaunda, era favorável à presença portuguesa em África…

M.C. — Já tive ensejo de uma vez esclarecer esse ponto. Kaunda apresentava-se ao Governo português como cristão, um amigo que queria acabar com as guerras e ver tudo em paz. Para isso oferecia-se para intermediário nas negociações a fazer entre Portugal e a Frelimo, como veio a ser. E essas negociações só podiam conduzir ao que conduziram: a entrega total.

J. — O senhor autorizou alguma vez conversas com o senhor Kaunda para encaminhar negociações com a Frelimo?

M.C. — Não senhor. Autorizei conversas oficiais e oficiosas para sondar intenções, esclarecer as nossas posições, obter maior compreensão para a posição portuguesa. Tudo o que alguém possa ter dito ou feito para além disso foi abusivo e, aliás, a pessoa que se atreveu a fazê-lo não deixa dúvidas, na sua narrativa dos factos, de que tinha consciência disso.

J. — Julgo que é a altura de passarmos ao esclarecimento do que ocorreu no dia 25 de Abril. Mas, antes disso, gostaria que me dissesse se é verdade ter sido nomeado o general Costa Gomes para o lugar de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas sem o assentimento do presidente Tomás?

M.C. — O senhor almirante Tomás está vivo, graças a Deus, e poderá pôr as coisas no seu lugar. Mas sempre direi que essa versão é falsa. Já quando se tratou da promoção de Costa Gomes a general consultei o senhor presidente perguntando-lhe se havia objecção política que a impedisse. O presidente exprimiu as suas reservas acerca da pessoa, mas considerou justa e possível a promoção, que só depois disso teve lugar. Anos mais tarde, quando tive de preencher o lugar de chefe do Estado-Maior-General, depois de examinar o assunto com os ministros militares e de chegarmos à conclusão de que Costa Gomes, cujo comando em Angola fora muito bem sucedido após cinco anos de comando em Moçambique, era a melhor solução, fui consultar o senhor presidente outra vez. Não havia decisão tomada, não havia facto consumado. Foi posta a questão aberta. Se o senhor presidente vetasse a nomeação, não se teria feito. Sua Excelência renovou as suas reservas acerca da pessoa mas, reconhecendo as dificuldades de outras soluções, não vetou o nome. Só depois se fez a nomeação.

J. — Depois de nomeado, o professor notou alguma coisa de anormal na conduta do general Costa Gomes?

M.C. — O general, que repetidamente me afirmou a sua lealdade, procedeu correctamente até ao momento em que aceitou a chefia do Movimento dos Capitães. Foi a partir daí que desvairou.

J. — Por que motivo o não demitiu logo?

M.C. — Porque sabia que essa demissão agravaria a questão, desencadearia o movimento revolucionário e me privaria de um interlocutor que, apesar de tudo, ainda se dizia desejoso de ajudar o Governo.

J. — E quanto às suas relações com o general Spínola?

M.C. — O general Spínola impôs-se à minha consideração como chefe militar. Na qualidade de governador mostrou, durante os primeiros tempos, um grande desejo de se integrar na política do Governo e em especial na minha orientação. A partir de certa altura, porém, começou a pretender ser mais político do que militar e a afastar-se das directrizes governamentais, o que deu lugar a troca de explicações.

J. — Troca de explicações?

M.C. — Sim. Foi sempre meu hábito pôr claramente aos meus colaboradores as dúvidas ou objecções quc a conduta deles me suscitasse. No caso do general houve uma troca de cartas que definiu posições no princípio de 1973.

J. — Acho que o País devia conhecer essas cartas.

M.C. — Tenho aqui cópias que ponho à sua disposição, na certeza de que ao general interessa tanto como a mim a publicação desses documentos, que não são correspondência particular.

J. — Após a vinda do general para Lisboa, qual foi o tipo das relações entre ambos?

M.C. — De cortesia. Spínola era uma figura militar de destaque e não foi nunca meu processo diminuir aqueles que pudessem ser considerados valores nacionais. Sem haver entre nós a confiança que em certa época chegou a existir, recebi-o sempre com deferência e escutei o que me dizia com atenção.

J. — Pelo que respeita à publicação do Portugal e o Futuro, o senhor não tem nada mais a dizer além do que escreveu no Depoimento?

M.C. — Não.

J. — Todavia, um jornalista espanhol, em texto reproduzido num livro escandaloso publicado em Lisboa, diz que está demonstrado ter o próprio chefe do Governo revisto pessoalmente o livro de Spínola e servido de intermediário para a edição numa tipografia dependente da CUF.

Marcello Caetano abre os olhos de espanto. E só tem uma exclamação : «é incrível».

J. — Nesse livro português diz-se haver rumores que para revisão das provas o senhor e o general se encontraram em casa do almirante Roboredo e Silva…

M.C. — E o general não desmentiu já tudo isso? E o almirante não disse que era tudo fantasia? Imagine que, apesar de conhecer há muitos anos o almirante Roboredo, não éramos visitas e nunca fui a casa dele. Mas como é que se inventam coisas assim?

J. — De modo que não houve qualquer entendimento entre o senhor e o general antes da publicação do livro?

M.C. — Nenhum. Nem podia haver. Também tenho aqui, por acaso, apontamento da conversa tida com o general Spínola por ocasião de uma visita que me fez em S. Bento no dia 7 de Março de 1974. Aí a tem. Veja se a conversa deixa dúvidas.

J. — Não deixa dúvidas nenhumas: o senhor condena a publicação do livro e repele a ideia da existência de um acordo entre ambos.

M.C. — Desse apontamento foi imediatamente fornecida cópia ao ministro da Defesa, que conhecia também os documentos anteriores.

J. — Mas o seu último ministro da Defesa diz, no livro recém-publicado, para justificar o êxito do 25 de Abril, que faltava «conhecimento preciso da orientação do chefe do Governo perante o que se passava», visto o senhor ter oferecido o poder aos generais Costa Gomes e Spínola após a saída de Portugal e o Futuro.

M.C. — A história dessa «oferta do Poder» está feita no Depoimento e na minha segunda entrevista, textos que o doutor Silva Cunha podia e devia conhecer à data em que escreveu. Mas no dia 25 de Abril também não vejo como lhe faltava «conhecimento preciso» da minha orientação. Na conversa com os generais eu mandei-os falar com o presidente da República e expôr a posição das Forças Armadas, não os aconselhei a fazer uma revolução nas ruas, que era justamente o que eu queria evitar. É preciso não esquecer as circunstâncias em que decorreram essas conversas com os generais. A insurreição dos oficiais do quadro permanente aparecia coberta pelas mais altas hierarquias das Forças Armadas. E pretendia-se coagir o chefe do Governo a adoptar providências, e até rumos políticos, que ele considerava contrários ao interesse nacional. Só me restava submeter-me ou demitir-me. Qualquer pessoa com dois dedos de inteligência percebe que ao dizer ao general Costa Gomes que, se quisesse (apoiado nos oficiais que o tinham tomado por porta-voz) realizar as imposições do M.F.A., assumisse as responsabilidades de o fazer e não pretendesse transformar-me em seu instrumento, eu estava recusando submeter-me, quer dizer que não pactuava com o que me era proposto, para não dizer exigido. Aliás, no dia 25 de Abril, o ministro da Defesa esteve várias vezes em contacto telefónico comigo, no Quartel do Carmo, quando ele se achava no Ministério do Exército e depois quando se encontrava em Cavalaria 2: e nunca ouviu conselhos de cedência ou frouxidão, mas sim ordens para organizar a resistência.

J. — O doutor Silva Cunha afirma que ignorava os motivos pelos quais o chefe do Governo foi para o Quartel do Carmo.

M.C. — Que insensatez a dele, levantar essa questão! Sem falar em que à data em que escreveu o livro o assunto estava publicamente esclarecido. Como contei na segunda entrevista, tinha sido determinado que, em caso de emergência, o Governo se dirigisse para o Quartel-General da 1.ª Região Aérea, em Monsanto. E para aí fomos, o presidente da República e eu, no dia 16 de Março. Por sinal que, devendo a defesa do quartel ser feita pelos caçadores pára-quedistas, estes nunca chegaram, alegando que um denso nevoeiro impedia a sua partida de Tancos… Ora, tendo-se sabido em 16 de Março que Monsanto era o posto de comando governamental, tornava-se evidente a necessidade de prever outro lugar, em alternativa, para o caso de esse ser visado pelos revoltosos ou não merecer confiança. A quem incumbia a previsão dessa alternativa, a escolha do novo local, a sua comunicação aos chefes do Estado e do Governo? Está claro que aos serviços da Defesa Nacional. E não o fizeram. No dia 25 de Abril, pelas razões que expus, não pude pois dirigir-me para Monsanto, e pelas mesmas razões se não dirigiu para lá o presidente da República. Este saiu de casa e escolheu um local reservado que não comunicou, mas donde mais tarde estabeleceu contactos com várias guarnições da província para ver se podia apoiar-se nalguma para reagir. Não encontrou apoio nenhum. E eu, por conselho do director-geral de Segurança, fui para o Carmo.

J. — Do Carmo manteve-se em contacto com os ministros militares?

M.C. — Pode dizer-se que o contacto foi permanente enquanto estiveram no gabinete do ministro do Exército, no Terreiro do Paço. Daí, quando o Ministério foi invadido, os ministros conseguiram fugir e dirigiram-se para o Quartel de Cavalaria 2, donde novamente se puseram em contacto comigo.

Determinei ao ministro da Defesa que dinamizasse o Comando de Segurança Interna acumulado pelo chefe do Estado-Maior-General que se encontrava junto dele. Estava assente que o comandante da Segurança Interna, em caso de alteração da ordem, assumia o comando das forças militares e militarizadas para dirigir as operações necessárias. Assim, competia-lhe chamar os comandos da G.N.R., da P.S.P. e das unidades fiéis, dar balanço às forças disponíveis e utilizá-las. Na mesma altura, como o ministro do Interior também estava em Cavalaria 2, lembrei que, estando eu na G.N.R., que dependia dele, talvez fosse o Carmo o lugar mais adequado para que exercesse as suas funções naquele momento. O ministro veio de Belém para o Carmo. Ninguém, nem de manhã (a começar pelo comandante da G.N.R.), nem a partir do Quartel de Cavalaria 2, me disse que estava mal onde estava, que devia sair dali, indicando-me lugar mais seguro.

J. — Comando de Segurança Interna tomou algumas providências?

M.C. — Não sei. Quando a força da Escola Prática de Cavalaria, acompanhada pela populaça, se plantou no Carmo, ficou claro que era ali que se jogava a sorte do movimento revolucionário. Quem me acompanhou no Carmo sabe que repetidamente sugeri o envolvimento do largo por tropas que colhessem os revolucionários entre dois fogos. Essas tropas não vieram.

J. — Os ministros militares também não permaneceram em Cavalaria 2…

M.C. — Não. Segundo me contou o antigo ministro da Defesa, o comando do regimento verificou que os soldados, acaudilhados por sargentos e por aspirantes e alferes milicianos, estavam indisciplinados, correndo risco a segurança dos membros do Governo. Então foi pedido um helicóptero a Monsanto, no qual os ministros embarcaram protegidos pelos oficiais superiores no meio das chufas e ameaças da soldadesca.

J. — Entretanto no Carmo…

M.C. — Sem segurança de sermos libertados pelas forças que deveriam fazê-lo e que no caminho, conforme o Comando da G.N.R. me informou, fizeram meia volta, víamos desmoronar-se qualquer intenção de defesa. Os ministros militares certamente não tinham podido socorrer o chefe do Governo. Foi então que, já com o inimigo dentro da praça, como contei, começaram as conversas com o general Spínola.

J. — Os ministros militares em Monsanto fizeram alguma coisa?

M.C.. — Tudo quanto sei é o que vem no livro Duas Crises, a pág. 105: «Durante a tarde, dirigimo-nos de helicóptero para o Comando da 1.ª Região Aérea, tendo o ministro do Exército seguido na sua viatura. Aí fomos recebidos pelo respectivo comandante, general Rui Tavares Monteiro, e… aguardámos.» Aí está o que se passou, narrado com fidelidade segundo afirma o senhor professor Silva Cunha a pág. 358 do seu livro. Aguardaram. E, entretanto, o ministro da Defesa telefonou para o Carmo «a fim de me dar conta da situação e receber instruções». Quer mais clara confissão de que não viam nada mais a fazer? Porque a missão deles estava bem clara: desfazer o cerco do Carmo e libertar-me. Se o não fizeram, é porque não puderam, rendo-lhes essa justiça.

J. — Tem-se insistido em que o senhor proibiu a D.-G.S. de agir…

M.C. — Já desmenti essa calúnia. Isso é falso. Aliás, repito, numa altura dessas não tem que se pedir licença ao chefe do Governo para actuar: a missão das forças de segurança é intervir conforme o papel de cada uma. A realidade foi outra. Agentes da D.-G.S. que vieram para o Brasil, a quem perguntei as razões da passividade na Rua António Maria Cardoso, contaram-me que às sugestões feitas por alguns aos seus inspectores para saírem à rua a lutar receberam a resposta: «Calma, isto é coisa de militares e nós sempre nos entendemos bem com eles.»

J. — A G.N.R. e a P.S.P. pediram-lhe instruções? E o comandante da Região Militar de Évora?

M.C. — O que se passou com a G.N.R. já narrei, na segunda entrevista. Da P.S.P. não tive notícias nem de Évora.

J. — A entrega do Poder ao general Spínola continua sendo muito discutida. O seu último ministro da Defesa, acusa-o de tê-lo feito por sua exclusiva decisão, sem consultar ninguém.

M.C. — Eu não entreguei Poder nenhum. Vi o que era a populaça que estava no Largo do Carmo, tinha informação da politização esquerdista do M.F.A. e procurei não lhes cair nas mãos (tencionava que não me apanhassem vivo, aliás) e tentar prestigiar alguém que salvasse o País do caos. Por isso acedi a entrar em contacto com Spínola.

J. — Diz-se que ao entrar na sala onde o professor estava, o general disse: «Em que estado me entrega este País!»

M.C. — O que eu ouvi foi coisa completamente diferente. Referindo-se ao tumulto do Largo do Carmo comentou: «A que estado estes gajos deixaram chegar isto!»

J. — Mas não deveria ter consultado o chefe do Estado? E os seus ministros?

M.C. — O chefe do Estado não pôde ser encontrado durante todo o dia e só ao fim da tarde regressou a casa. Os ministros que consultei foram os únicos que estavam comigo, o do Interior e o dos Negócios Estrangeiros. Como é que, naquela altura, eu havia de me pôr ao telefone (aliás já controlado) a pedir opiniões?

J. — O senhor diz que não entregou o Poder ao general Spínola. Não há um documento nesse sentido?

M.C. — Não há documento nenhum. Interpretou-se a minha entrega a Spínola como uma transmissão de poderes, mas não é exacto, como já expliquei na segunda entrevista.

J. — O professor Silva Cunha conta que, depois de preso no Quartel da Pontinha, foi o senhor que transmitiu ao presidente da República as instruções para se preparar para seguir para o Funchal.

M.C. — Efectivamente, muitas horas depois de estarmos detidos na Pontinha, já de madrugada, foi-me dito que tinham andado à procura do presidente da República sem saberem onde parava, até que por fim se descobrira que se encontrava em casa, no Restelo, guardado por alguns legionários. Estava a ser organizada uma unidade de pára-quedistas para o ir prender. Eu compreenderia quanto isso seria desagradável e pior ainda se houvesse resistência e combate, pelo que me pediam que falasse pelo telefone ao presidente a informá-lo da situação e a solicitar-lhe que consentisse em dirigir-se ao aeroporto acompanhado por um oficial superior, dissuadindo os que o acompanhavam de qualquer resistência. Pareceu-me razoável o pedido e acedi, tratando com o senhor almirante Tomás, nos termos que me pareceram convenientes, embora sob a vigilância de um coronel do M.F.A.

J. — Creio que versámos os pontos principais. Muito obrigado pela atenção que me dispensou.

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