Depoimentos - José Passo
aosPrimeiro de três depoimentos colhidos em 1999 por Manuel Marques José, que os publicou na sua página pessoal que parece não ter mudado desde o ano 2000.
Manuel Marques José escreveu sobre eles assim:
«Os depoimentos que se seguem são de pessoas que desempenharam funções importantíssimas na Polícia Internacional e de Defesa do Estado e na Direcção-Geral de Segurança. E também funções diversificadas.
Outros elementos de interesse poderão vir a ser acrescentados futuramente. É essa a minha ideia, pois as coisas que sabem são de um valor inestimável para a História.
O que pedia era isto:
1. Biografia
2. Quando entrou para a PIDE
3. Funções desempenhadas
4. Factos que recorda, relevantes, passados consigo ou com outros
5. Opinião sobre o regime anterior
6. Opinião sobre o regime actual
7. O que foi o 25 de Abril de 1974 (causas, intervenientes, …)
8. O que pensa do futuro de Portugal
Entretanto, pensei que se houvesse um ponto onde se focasse o dia 25 de Abril (como o viveu), e como foram vividos os dias imediatamente antes e depois, julgo que seria melhor. Assim, poder-se-ia reformular o ponto 7 que passaria a ser mais ou menos “O que foi o 25 de Abril de 1974, como viveu esse dia, os dias antes e depois (aquilo do 16 de Março, por exemplo, qual a sua acção no dia 25 de Abril, etc, etc)”.
O depoimento do Snr. Abílio Pires foi escrito. O do Snr. Óscar Cardoso, meio escrito meio falado. O do Snr. José Manuel Passo, quase meu vizinho, foi maioritarimente falado.
Agradeço-lhes também, aqui, mais uma vez, agora publicamente, o facto de terem tido esta amabilidade para comigo.
Aos Snrs. Passo, Cardoso e Pires, o meu muito obrigado!
Juntamos os nossos aos agradecimentos do Sr. Manuel José, e os damos nós a ele também, esperançosos de que leia um dia estas páginas.
Primeiro, José Passo.
OPUS CITATUM
Depoimento a Manuel Marques JoséJosé Manuel da Cunha Passo1999Chamo-me José Manuel da Cunha Passo e nasci a 13 de Setembro de 1925, em Mafra.
O meu pai chamava-se Manuel Joaquim Baleizão do Passo e a minha mãe Aida Herculana Teixeira da Cunha Passo.
O meu pai era Oficial de Cavalaria e foi, mais tarde, nomeado Presidente da Câmara e Administrador do Concelho de Mafra.
Em 1936 foi escolhido e nomeado para desempenhar o cargo de Governador de Damão (na Índia Portuguesa) e, como é natural, a minha mãe, as minhas irmãs e eu acompanhámo-lo.
A minha mãe faleceu, em Damão, em 1939, tendo sido sepultada na capela do cemitério de Damão depois de uma autorização especial do Papa, porque era proibido, sem autorização especial, sepultar fosse quem fosse dentro de uma Igreja.
Em 1941, o meu pai foi para Diu, desempenhar o cargo de Governador e aí veio a falecer em 1948.
Entretanto, em 1942 fui para Goa, para o Liceu (6º ano antigo), e em 1943 vim para Portugal Continental, Lisboa, para acabar o Liceu.
No ano de 1944, entrei para a Faculdade de Ciências, depois do exame de admissão à faculdade, exame esse que foi instituído pela primeira vez nesse ano. Fui estudar Preparatórias Militares e Engenharia Civil.
Em 1947, fui tirar o curso de Oficial miliciano de Aeronáutica.
Em Janeiro de 1951, fui convidado para prestar serviço militar; coisa que era a primeira vez que se fazia para os Oficiais milicianos de Aeronáutica, o prestarem serviço militar efectivo, e estive nas Bases Aéreas de Sintra e da Ota. Em 24 de Abril desse mesmo ano, tive um desastre de aviação que provocou ferimentos que me fizeram estar internado 2 meses, e só ao fim de 10 meses e a meu pedido é que fui considerado apto para o serviço.
Em 1954, na altura da junção da Aeronáutica Militar com a Naval, fui um dos primeiros quatro aviadores militares a prestarem serviço na Base do Montijo, que era uma Base Naval.
Também em 1954, fui convidado para ir para a TAP onde contudo, por razões diversas, não fiquei.
Vim para casa, e fiquei inactivo.
Soube, entretanto, que ia haver concurso para Inspector da P.I.D.E. (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Acabei por concorrer e, após provas extremamente exigentes, fui aceite. Éramos sete, ficámos dois.
Entrei para a P.I.D.E. em 11 de Junho de 1955, como Inspector nos Serviços Informativos. Aí permaneci até 1958. Nessa altura transitei para os Serviços de Pessoal e Fronteiras.
Em 1961, fui colocado na Direcção de Serviços de Investigação.
Em 1962, Novembro, fui promovido a Inspector-Adjunto.
Em 1964, fui nomeado Chefe do Gabinete Nacional da Interpol e desloquei-me pela primeira vez à Assembleia Geral da Interpol (Assembleias essas que se realizavam anualmente). Nesse ano foi na Venezuela. Durante essa Assembleia, a Etiópia tentou levantar o problema da nossa presença nesta organização invocando a nossa política Africana. No entanto, vendo-se sem apoio, o delegado daquele país acabou por retirar o seu pedido.
Em 1965, fui eleito membro do Comité Fiscal da Interpol, na altura eu tinha a designação de Comissário de Contas. Éramos três elementos eleitos, anualmente, entre todas as polícias do mundo. Permaneci neste cargo até 1969, altura em que fui eleito Vogal do Comité Executivo da Interpol, para um mandato, com o apoio de Países Africanos, Asiáticos e Sul-Americanos, para além de Europeus. Éramos sete candidatos da Europa e o eleito fui eu, com mais do dobro de votos que o segundo classificado. Era um dos três elementos representantes da Europa do Comité Executivo e era o único Português a fazer parte de um organismo internacional, fosse de que natureza fosse. Estive lá até 1972 e não voltei a concorrer a esse posto.
Entretanto, em 1967, tinha chefiado a Segurança do Papa Paulo VI quando da sua vinda a Portugal. Devido à maneira como decorreu a visita, o Governo Colombiano pediu ao Governo Português autorização para que fosse um funcionário da Polícia Portuguesa à Colômbia (de preferência eu) para organizar e chefiar a Segurança do Papa quando da sua ida aquele país. O Governo Português deu autorização e eu fui para a Colômbia, onde estive três semanas.
Durante o período em que estive no Comité Executivo, tive muito boas relações com quase todas as polícias do mundo e para citar algumas, Argélia, Quénia, México, Congo, para não citar países da Europa e outros mais que nos faziam «guerra».
Em 1972, fui nomeado Director de Serviços de Investigação. Ainda nesse ano fui indicado como candidato à presidência da Interpol, mas não fui eleito.
Vamos agora ao que interessa sobre o «movimento dos capitães». Em 9 de Setembro de 1973, fui informado que o «Movimento dos Capitães» tinha passado a ser controlado pelos comunistas.
A D.G.S. tinha conhecimento do que se estava a passar com esse grupo de pessoas. No entanto, devo desde já dizer, nunca foram dadas ordens superiores, governamentais, para que tivéssemos uma actuação adequada à situação.
Em 16 de Março de 1974, aquando da «revolta das Caldas», eu estava em Paris, numa reunião da NATO.
Foi preciso a D.G.S. dizer ao Governo que os chamados revoltosos já estavam a caminho de Lisboa, para que o Governo acreditasse que aquilo que estávamos e informar era verdade. A valentia desses homens foi comprovada quando vinham a descer a Auto-Estrada para Sacavém, viram um pelotão da GNR em baixo disposto a fazer-lhes frente. Deram meia-volta e foram-se embora para as Caldas. Que grandes heróis!
No dia 25 de Abril de 1974 estava em Bruxelas numa reunião da N.A.T.O. com o Subdirector da P.I.D.E. ou D.G.S. (que nessa altura já havia mudado o nome) Barbieri Cardoso. Não regressei a Portugal. Estive exilado em Espanha até Junho de 1981.
Uns dias antes, a 19 de Abril, antes de irmos para Bruxelas, tivemos uma reunião, o Director-Geral Major Silva Pais, o Subdirector-Geral Barbieri Cardoso, o Director dos Serviços de Informação Álvaro Pereira de Carvalho e eu. Nessa reunião ficou assente o que se deveria fazer caso houvesse alguma perturbação de ordem pública. Nessa altura, a D.G.S. assentava fundamentalmente em nós os quatro. Sabíamos que algo estava para acontecer. Julgámos que o movimento dos capitães se desencadearia a 1 de Maio de 1974.
No dia 21 de Abril, Barbieri Cardoso e eu fomos para Bruxelas, para uma reunião do Comité Especial da N.A.T.O. Talvez devido à nossa ausência e esta é uma opinião meramente pessoal, o golpe foi antecipado para 25 de Abril.
Estranhamente, o Presidente do Concelho, Marcello Caetano, foi refugiar-se no Quartel do Carmo. Não eram essas as normas a seguir. Deveria ter ido para Monsanto, de onde seria fácil uma evacuação e o controlo do movimento. Uma opinião pessoal: Marcello Caetano sabia que cairia, baldeado pela esquerda ou pela direita: escolheu cair para o lado dos comunistas ou talvez tivesse avaliado mal a situação e acreditado que as coisas se pudessem passar de modo diferente.
Havia também algumas movimentações estranhas em prol de Spínola, mesmo dentro da própria D.G.S. O Inspector Superior Coelho Dias e o Inspector Fragoso Alas estariam feitos com António de Spínola. Aliás, assim que o poder foi entregue a este general, ele nomeou Coelho Dias Director-Geral da D.G.S.
O golpe de 25 de Abril foi um movimento controlado pelos comunistas tendo como fim a desagregação do Estado Português com a «libertação» das Províncias Ultramarinas. Foi um movimento promovido pela então U.R.S.S. e apoiado pelos comunistas e socialistas portugueses. Aconteceu depois a designada “descolonização exemplar”, de que, infelizmente, ainda hoje os povos Africanos estão a sofrer os «benefícios».
Volto a dizer que a D.G.S. sabia o que se estava a passar, mas o Governo nunca nos deixou actuar devidamente.
Um pormenor curioso, as Províncias Ultramarinas foram todas entregues a movimentos Comunistas.
O Portugal do Estado Novo tinha fundamentos muito válidos e certos. Todavia, após a entrada de Marcello Caetano para o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, passou a haver desmotivações em relação a esses princípios, o que, junto com a imensa propaganda comunista e socialista, criou um estado de contestação, embora dominado.
A D.G.S. nunca teve problemas em relação ao controlo dessas actividades. O que me parecia haver era, a nível de governo, uma grande permissividade em relação a elas e falta de vontade para um combate eficaz a este estado de coisas. Ora, a D.G.S. não actuava por si própria, obedecia a ordens.
Lembro-me de um dia ter conversado, em Madrid, com Tschombé, líder africano que viera secretamente a Lisboa falar com Salazar. Ficara muito bem impressionado. Disse-me que Salazar o avisara para continuar a dizer mal de Portugal, e para fazer qualquer coisa por nós. Mais tarde voltei a encontrar-me com ele em Madrid, e avisei-o que poderia correr perigo. Não teve os cuidados que eu lhe disse para ele tomar e acabou por vir a ser morto.
Sobre o regime actual o que hei-de dizer? Nunca se viu tanta corrupção, tantos escândalos, como agora. Podem dizer: antigamente também havia mas escondiam-se. Ora os comunistas e os socialistas que dominavam e dominam a comunicação social tê-los-iam posto cá fora. E um exemplo que temos é aquela coisa que se passou, e que agora chamam pomposamente Ballet Rose, em que estariam implicados membros do governo, o que nunca se provou. Apareceu aí um Sr. Moita Flores a escrever um livro e uma série de televisão; depois veio dizer que aquilo não era bem a verdade, que lhe tinham pedido era para fazer uma coisa romanceada. É claro que no livro e na série de T.V. tinha que aparecer um Inspector da P.I.D.E., quando nós da Polícia, nunca tivemos nada a ver com o caso. É assim que se faz a história do 25 de Abril contra a Polícia, aproveitando-se todos os casos para, mentindo, dizer mal desta instituição. Isso não me parece honesto nem sério.
Eu fui ensinado que a concepção da política era servir e não servir-se, como agora se faz em todo o lado. Não há actualmente nenhum político que seja pobre; antigamente contavam-se pelos dedos aqueles que eram ricos e mesmo esses já eram ricos antes de irem para a política. Ora isto parece responder à ideia que tenho do estado das coisas.
E acho muita graça, para não dizer outra coisa pior, falarem no «orgulhosamente sós», como se Portugal se tivesse posto ou sido posto à margem. Nunca houve tempo em que tivessem cá vindo tantos Chefes de Estado e Presidentes do Conselho como a partir de 1956, 1957, por exemplo; Presidente Eisenhower, Rainha Isabel de Inglaterra, Rei da Tailândia, Negus da Abissínia, Princesa Margarida de Inglaterra, Presidente Café Filho do Brasil, Presidente do Brasil Juscelino Kubitschek de Oliveira, Rei da Tailândia e até o Presidente Sukarno da Indonésia. Era o tal «orgulhosamente sós». Eu visitei variadíssimos países, e sei que não sou ninguém, alguns até diziam mal de Portugal, e não sei quê e não sei que mais, e no entanto era lá recebido com todas as honras, como por exemplo: Marrocos.
Hoje somos um País mendigo sempre de mão estendida. Vivemos à custa do que vem de fora.
Devo, no entanto destacar a grande obra que o regime do 25 de Abril realizou: a Ponte 25 de Abril que conseguiu fazer em 24 horas, e com o dinheiro do Estado Novo!
O que penso do futuro do País? Vai ser mau, muito mau, um dia a Europa vai deixar de dar dinheiro.
Os heróis da democracia? Antes nunca tinham feito nada, depois enriqueceram à conta. Aliás, é muito corrente hoje a ideia de que ser-se político é uma forma de enriquecer.
Quando se deu o 25 de Abril, a D.G.S. foi extinta e todos os seus funcionários incriminados. Eu fui julgado. Nunca fui preso e só voltei a Portugal quando tive a garantia que não me faziam nada. Nunca me apresentei no Tribunal, nunca lhes passei, como se costuma dizer, cartão, nunca lá fui.
Fui julgado e, segundo a sentença, apesar de eu ter sido sempre muito cumpridor, um bom funcionário com serviços prestados à Pátria, nunca ter feito mal nenhum, era condenado a 3 meses de prisão por única e exclusivamente ser Director da D.G.S. Quando recebi a cópia da sentença, mostrei a um Americano, que era o Delegado do F.B.I. em Madrid, que me pediu uma fotocópia a qual mandou para a América, onde se riram da maneira como se trabalhavam as coisas em Portugal.
Para provar a consideração que o F.B.I. tinha pela Polícia Portuguesa, pouco tempo depois da morte de Martin Luther King, recebi um telefonema de Londres do representante na Europa do F.B.I. dizendo que o Director do F.B.I. (Edgar Hoover) me queria pedir um grande favor, que era saber se um “tal” John Sneid (o suspeito de ser o assassino de Luther King) estaria ou teria estado em Portugal e que no dia seguinte ele (de nome Phil Cox) viria a Lisboa. Vinte e quatro horas depois chegou, e eu com muita sorte, consegui-lhe dizer que o «homem» tinha estado em Lisboa, mas já tinha voltado para Londres com outro passaporte dado na Embaixada do Canadá, pois o primeiro tinha um erro de ortografia (John Sneia em vez de John Sneid).
Disse-lhe também que era natural que ele fosse para a Bélgica com intenções de seguir para o Congo. A Scotland Yard dizia que ele não estava em Inglaterra, mas curiosamente, dois dias depois ele foi preso no aeroporto de Londres quando se preparava para embarcar para Bruxelas.
Agora pergunto eu: alguma vez depois do 25 de Abril, embora Portugal esteja integrado em todos os organismos internacionais, lhes foram pedidas quaisquer diligências deste género?
Uma história engraçada:
Por alturas de 1972/73, o Partido (P.C.P.) lançou uma campanha muito grande para difamar a D.G.S. Todos os motivos serviam. Um deles foi absolutamente caricato e que nós chamámos, de brincadeira, a «guerra das alfaces». Escreveram ao Presidente do Conselho dizendo que os presos estavam muito gordos, que comiam muita carne, muito peixe, e que não comiam verduras. Pediam para serem dados mais legumes aos presos, principalmente saladas. O Presidente do Conselho mandou informar disso a D.G.S. e a resposta que demos foi esta: que havia um pequeno surto de cólera em Lisboa e que o que o Partido queria era ver se arranjava algum caso de cólera na cadeia para fazer a sua campanha.
Claro que não se passou a dar nem mais nem menos alfaces, mas as alfaces que se costumavam dar. Isto prova a maneira como esta gente trabalha!
Voltando a falar na «descolonização exemplar» que agora dizem ter sido a «descolonização possível» aparece-nos o caso de Timor que foi ocupado pela Indonésia com o acordo das autoridades Portuguesas (encontro secreto em Paris) e que durante 24 anos esteve liberto. Ao fim destes anos todos conseguiu-se que fosse feito o referendo sobre o futuro de Timor e nem mesmo assim deixaram o povo timorense escolher o seu destino. Só lhe deram duas hipóteses: ou a integração na Indonésia ou a independência. O resultado do referendo foi uma maioria esmagadora (78%) a favor da independência.
Desde que foi autorizado a jornalistas irem a Timor, são todos unânimes em dizer que os timorenses pretendem lá os portugueses, militares ou civis. Continuam a rezar e a falar português. Um facto comovente foi ver na TV um timorense a chorar empunhando uma bandeira portuguesa, cantando o hino nacional e a dizer “agora já estamos libertos”. Esta parece ser a melhor resposta que se pode dar a todos que duvidaram da fidelidade dos timorenses. Por exemplo: Mário Soares no seu livro — Portugal Amordaçado — diz: Timor nada tem a haver com Portugal e é parte integrante da Indonésia.
Tenho pena de acabar com estas palavras que demonstram bem o patriotismo dos «libertadores» de Portugal.