ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

Armindo Monteiro e o partido do estrangeiro

aos

Episódio entre o Embaixador de Portugal em Londres, Armindo Monteiro, e Oliveira Salazar, acerca da política de neutralidade portuguesa.

OPUS CITATUM
Salazar, Vol. III — As Grandes Crises (1936-1945)Franco NogueiraAtlântida Editora, 1978págs. 444 – 449

Então, a 1 de Julho, Monteiro escreve a Salazar mais uma longa carta. Resume a questão, justifica-se, explica-se. E formula novas considerações. Acusa o governo de não examinar a situação na sua totalidade: «não deu excelente exemplo ao desprezar elementos essenciais»1. Defende a neutralidade. Mas destrói-a, causticamente: «Alguns ingenuamente pensavam mesmo que simplesmente com autoridade moral — a lenda da neutralidade respeitável fez profundas devastações em certas almas — podiam desviar a marcha da catástrofe. Nem a violação da soberania de nove ou dez pacíficos países os desiludiu; nem mesmo o trágico incidente de Timor os desenganou.» E explica: «não queria de modo nenhum que Portugal sofresse ou sacrificasse um miligrama mais do que fosse estritamente indispensável. Mas tinha a convicção profunda de que nenhuma atitude do governo português — nenhuma — podia evitar o que tinha de acontecer: por uma forma ou outra a guerra viria ao nosso encontro.» Por isso, «na política interna sustentei sempre diante de V. Ex.ª a ideia de que era indispensável afastar o país de optimismo sem base na realidade, preparando-o moral e materialmente, para os grandes sacrifícios que lhe podiam vir a ser exigidos»; e assim «o país devia estar preparado para enfrentar perigos e não para as doçuras da paz»2. De outro modo, «a hora do perigo encontrar-nos-ia divididos e desprevenidos.» Mas «de tudo isto falei insistentemente a V. Ex.ª, há muito tempo, com sinceridade e toda a força de afirmação que Deus me deu, na certeza de pleitear a causa de Portugal — isto é, de procurar levar V. Ex.ª para o caminho político onde a nossa independência e a nossa integridade territorial melhor e com menos sacrifícios pudessem ser defendidas3 E «devo agora dizer sem rodeios que a decisão mencionada no final do telegrama me não parece conforme com os mais altos interesses da Nação. Era elementar dever do governo considerar o futuro político do país entre os elementos mais dignos de ponderação e defesa no momento presente. Se este vier a perigar, não poderemos todos justamente acusar os ministros de hoje do seu alheamento, filho de mal inspirado patriotismo? Em que motivos psicológicos poderá a sua atitude encontrar explicações nos olhos de pessoas imparciais? Muito receio que um dia venham a ser acusados de exibicionismo ou de provincianismo moral.» Decerto: Salazar escrevera-lhe que nenhumas garantias de independência nacional terão valor no futuro «se o país cair outra vez por desorientação nossa e incompreensão alheia nas mãos dos factores tradicionais da desordem política, económica, social, que têm inferiorizado a nação.» E Monteiro pergunta: «como pode manter-se durante mais um minuto no poder um governo ou uma situação cujos representantes vão para a luta já com o falso pensamento de que há ou pode haver incompatibilidade entre os princípios que servem e a independência e a integridade da Nação?»4 Monteiro deseja a mudança de alguns membros do governo, e que Salazar não estivesse à frente dos Negócios Estrangeiros, para se não embaraçar no dia-a-dia da política externa; mas porque é assim, compreende que seja difícil «fazer executar uma política de guerra por pessoas que efectivaram até agora uma política considerada de neutralidade geométrica.» Salazar pensa, e assim o escrevera a Monteiro, que o regime «sofrerá assaltos e riscos graves pelo próprio facto da colaboração solicitada»; mas Monteiro não o acredita; e julga que essa colaboração com os aliados terá efeitos benéficos, se as «adaptações forem feitas sem avareza e sem demora.» Na verdade, continua Monteiro, toda a política externa de Salazar está em escombros: não é possível manter Portugal neutral até ao fim da guerra; ao contrário do que pensava o governo português, a vitória aliada está garantida; a Inglaterra não compreende nem atribui valor à paz na Península; e em Lisboa haviam-se deslumbrado com os fulminantes êxitos militares alemães. «Deste modo, desde o fim de 1941, a nossa neutralidade perdeu no mundo o seu valor activo.» E os Açores? São posição estratégica de primeira ordem, e os «Estados Unidos aproveitarão a primeira oportunidade que se lhes oferecer para se apropriarem» do arquipélago se este lhes for hostil. Resistir, seria impossível, «por representar uma corrida para a perdição.» Apenas há que decidir entre «colaboração de boa-vontade» ou «colaboração arrastada.» Mas «os ingleses passam o tempo a queixar-se de nós»; «afirmam que têm encontrado mais facilidades em Madrid do que em Lisboa»; e ainda há dias os espanhóis permitiram num aeroporto espanhol a aterragem de 400 aviões de guerra ingleses com destino à África do Norte. «A embaixada britânica em Lisboa vive em estado de batalha contra nós. V. Ex.ª vive em estado de perpétua irritação contra os ingleses»; «não nos adaptámos ao seu sistema de trabalho (dos ingleses) e quisemos para Portugal um sistema especial»; o chefe do governo «apareceu-lhes como um homem prodigiosamente interessado nos pequenos aspectos materiais dos problemas e quase indiferente às razões políticas e morais»; e «para arrancar ao Presidente do Conselho qualquer decisão é preciso fazer luzir aos seus olhos os ganhos materiais que o Estado pode tirar da negociação em curso»5. Até agora, «temos procurado conciliar a aliança com a neutralidade»; «o resultado foi que a Inglaterra passou a tratar-nos com quase indiferença, como se os nossos problemas a não interessassem»; e «deu-nos o destino agora uma ocasião única de varrermos esse passivo, limpando, como que por mágica, a atmosfera que temos respirado.» E Monteiro continua: não está optimista quanto às consequências da inevitável aceitação do princípio de colaboração; julga que nas negociações não se deve separar a Inglaterra dos Estados Unidos; não se pode ainda afastar em definitivo a hipótese de a Península vir a ser teatro de grandes acontecimentos; é «razoável prever contra nós uma dura reacção de Berlim»; e a «consequência lógica da adopção do princípio de colaboração é a guerra a curto prazo.» Para Monteiro, Salazar está imerso em confusão: a julgar pela última correspondência, dir-se-ia «que no espírito de V. Ex.ª não há ainda uma ideia assente sobre o caminho a seguir»: e no entanto «a posição do governo é extremamente fácil, porque nem sequer pode optar.» Vai ser dos aliados a vitória, e são inúteis as críticas, as discussões. «Depois da experiência havida, não é justo reconhecer que uma posição torcida, contrafeita, avarenta, não é a que melhor pode defender os interesses portugueses?» Assim, «o que lhe digo é que estes serão melhor protegidos por métodos de colaboração aberta do que pelo sistema do murro em cima da mesa, do protesto, da questiúncula.» Mais: «a providência deu-lhe, nesta hora, uma ocasião única de iniciar, com honra e vantagem, uma política nova», de que o país «pode sair prestigiado» e com o «Império intacto e largos meios de acção no futuro.» E conclui: «Esta carta é um acto de admiração e de amizade. Foi escrita para o defender dos seus maiores inimigos: a irritação e o desespero em que a diligência de 18 de Junho o lançou. Teria grande pena se V. Ex.ª o não reconhecesse.»

Oliveira Salazar fica perplexo com esta carta de Armindo Monteiro. Não entende as contradições, desde querer o embaixador a um tempo a neutralidade e a guerra, até recomendar colaboração a fundo com os aliados e recear por esse facto um ataque brutal da Alemanha. E julga o estado de espírito de Monteiro mais próximo de um embaixador da Inglaterra, e incompatível com o desempenho útil das suas funções. E em 12 de Julho, sobre a carta de Monteiro, redige um comentário. Diz:

«O nosso embaixador em Londres continua a escrever para a História. O seu interesse é manifestamente documentar e deixar registados os duros esforços que empregou para conduzir ao bom caminho um presidente do Conselho que aí por 1940 – 1943 governava em Portugal e cuja política consciente ou inconsciente era quebrar a aliança inglesa, entregar-se nos braços da Alemanha e comprometer a integridade territorial do país, designadamente as colónias, sacrificando tudo ao seu mau-humor e caprichos pessoais. Se, apesar de se deixarem sem resposta, por absoluta falta de tempo, os ofícios e cartas particulares do Embaixador, algum historiador, mais avisado e preparado para ler correctamente os acontecimentos, vem a verificar que, além de se pretender repor a aliança em termos aceitáveis exactamente para lhe dar mais consistência e eficácia, este período é caracterizado pelos mais altos serviços prestados à Inglaterra (e mais poderiam ser se ela estivesse em condições de bem compreender a política portuguesa), deverá ser grande o desapontamento. Porque esse historiador terá feito a distinção entre as directrizes políticas gerais e os mil incidentes diários, mais ou menos vivos e desagradáveis, com uma potência a quem mais de um século (embora entrecortado por períodos sãos) de absoluta subserviência da parte de Portugal quase deu o direito de se julgar em situação de mandar aqui soberanamente. Mas antes desse momento mais longínquo, com alguns anos mais e mais calma, o Embaixador há-de reler esta e outras cartas de que certamente tem cópia e então as achará ridículas. Ele corará diante de passagens que roçam pela impertinência; admirar-se-á de ignorar os factos ou confundi-los com a interpretação do esquerdismo inglês; envergonhar-se-á de tão grandes manifestações de snobismo: esta carta traduz o grande ar de um grande senhor que vive em Londres, está relacionado com os dirigentes do mundo, e fala de tudo isso superiormente a um pobre homem de Santa Comba, imbuído nos seus escrúpulos e amor ao país de «provincianismo moral.» O Embaixador achará que verdadeiramente se excedeu ao transplantar 400 aviões do campo inglês (aliás abrangido naquele terreno neutro, «de ninguém») pegado a Gibraltar, para um aeroporto espanhol, onde o governo de Espanha fingindo «que não via» os deixou alinhar em preparação de combate contra os alemães. Mais informado das relações anglo-espanholas no actual momento, Sir Samuel Hoare poderia dizer-lhe que nos últimos tempos a única concessão arrancada à Espanha foi a relativa evacuação de nacionais de países ocupados e essa se deveu sobretudo a Portugal. Muitas outras coisas se poderiam e talvez devessem dizer, mas deixo registado só o seguinte. Não tenho deixado penetrar em mim, acerca destas manifestações, nenhuma má ideia que toque a absoluta sinceridade do nosso Embaixador em Londres, e fixei-me apenas em que se trata de um mau estado de espírito que o impossibilita de bem servir neste momento o país no seu posto6

Depois, cinco dias mais tarde, Salazar escreve directamente a Armindo Monteiro.


  1. Sublinhado por Salazar, que à margem anotou um ponto de interrogação.

  2. Sublinhado por Salazar.

  3. Sublinhados de Salazar, depois das palavras «isto é»

  4. Salazar assinala fortemente esta passagem.

  5. Salazar sublinhou e anotou com interrogação esta última frase. Na verdade, não se compreende o motivo ou fundamento da acusação, em particular no caso dos Açores, em que Salazar fez questão de Portugal não receber qualquer contrapartida financeira, por considerar as facilidades concedidas como colaboração nos fins de guerra aliados e libertação de Timor.

  6. Este comentário não o escreveu Salazar em qualquer papel ou bloco separado, nem o fez dactilografar. Escreveu-o por seu punho na própria carta de Monteiro, aproveitando as entrelinhas do texto escrito à máquina, e o verso em branco de algumas folhas da carta. Garantiu assim que nenhum cronista futuro poderia ler o original da carta de Monteiro sem ler os comentários de que lhe fez o chefe do governo.

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