ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

À custa da nossa destruição

aos

Para discutir a extensão dos direitos americanos na base dos Açores, o Secretário de Estado americano, Dean Rusk, desloca-se a Lisboa nos dias 27 e 28 de Junho de 1962. Conversa longamente com Franco Nogueira, e encontra-se com o presidente do Conselho.

Para além de assuntos relacionados com a Aliança Atlântica e as relações entre o continente europeu e a União Soviética, omitidos nesta transcrição, discutem as relações bilaterais entre Portugal e os EUA e aprofundam assuntos anteriormente discutidos, e discutem outros novos, sobretudo acerca de Angola e da campanha contra Portugal na O.N.U.

OPUS CITATUM
Diálogos Interditos — A política externa portuguesa e a guerra de África, I VolumeFranco NogueiraEditorial Intervenção, 1979págs. 123 – 151

Lisboa, 28 de Junho de 1962 — Logo ontem, à descida do avião, e após troca de cumprimentos, o secretário de Estado Dean Rusk exprimiu o seu interesse em que principiássemos quanto antes as nossas conversas. Disse-lhe que estava ao seu inteiro dispor, e sugeri que, depois do jantar no Ministério, nos poderíamos retirar para uma sala separada. Rusk concordou.

Findo o jantar nas Necessidades, passámos a uma sala interior, e iniciámos uma primeira troca de pontos de vista. Eram 22h45.

Começou o secretário de Estado por referir as impressões gerais colhidas na sua presente visita à Europa.

(…)

Abordou de seguida o secretário a questão de Berlim.

(…)

Referiu-se depois o Secretário de Estado, de novo, à questão nuclear.

(…)

Abordou em seguida o secretário de Estado o problema das relações bilaterais entre Portugal e os Estados Unidos. Parecia-lhe que ofereciam um certo paralelo com as divergências existentes entre Washington e Paris, e que, uma vez bem analisadas, se revelavam incidir sempre sobre questões de processo. Talvez estivéssemos, por isso, perdendo de vista a larga porção de questões sobre que concordamos. Por exemplo: os Estados Unidos têm grande interesse nos planos de desenvolvimento económico e social em Portugal, bem como na participação de Portugal na NATO. Deve ser fácil para ambos chegar a acordo nestas questões, e mesmo, noutros problemas tão sensíveis, como Angola. Neste particular, o secretário de Estado queria reafirmar que os Estados Unidos não estavam tentando retirar Portugal de África, nem pretendem substituir-se ali a Portugal. Ao contrário: os Estados Unidos entendem que a presença de Portugal em África é indispensável, que Portugal deve manter laços com os seus territórios africanos, que é da maior importância a continuação da influência portuguesa em África. Importa, no entanto, que os dois países cheguem a um entendimento quanto aos meios e técnicas a usar para conseguir tais objectivos. Os Estados Unidos, por seu lado, têm interesse em esclarecer rapidamente alguns pontos que afastem possibilidades de desentendimento. Pensam, por exemplo, que em situações tais como as que se apresentam nas Nações Unidas, seria preferível para ambos os países tentar moderar e que ali se propõe e se debate, e isso têm-no feito, ainda que com perda de capital político por parte da América. Portugal e os Estados Unidos têm discordado nesta matéria; era um ponto que com vantagem haveria que discutir. Pensava também que, depois destas conversas, e nas que se seguissem em Lisboa e Washington, ficariam ainda em aberto certos e outros pontos de desacordo. Haveria, que identificá-los e classificá-los com precisão, visto pensar ser importante para ambas as partes verificar com nitidez onde residem as dificuldades. Tinha a noção de que, tal como em Londres, Paris, Roma e Bonn, as limitações de tempo lhe impediam de desenvolver completamente estas ideias em conversa tão curta: mas tínhamos ao nosso dispor, para o efeito, as vias diplomáticas.

Manifestei ao secretário de Estado o meu acordo quanto à necessidade sugerida de se obter uma visão mais clara das nossas divergências. Havia evidentemente largo campo de acordo, ou em que este seria fácil de conseguir. Por exemplo: a questão da cooperação económica e financeira, no sentido amplo e mesmo por parte dos Estados Unidos, e a da participação na Aliança Atlântica. A propósito, lembrei ao secretário de Estado que havia pouco tínhamos solicitado a abertura de negociações com o Mercado Comum, e se bem entendera o que lhe ouvira há instantes, aqui estava um passo nosso que decerto não poderia deixar de obter o aplauso dos Estados Unidos. Compreendíamos que não devíamos esperar negociações imediatas: até que se tomasse uma decisão quanto à entrada da Inglaterra, seriam prematuras outras negociações paralelas, até mesmo porque o Mercado Comum não dispunha de negociadores para atender a todos a um tempo. Comentou o secretário de Estado que em Julho poderá acaso chegar-se a um acordo de princípio quanto à admissão da Inglaterra. Durante o mês de Agosto, segundo cria, tudo parava na Europa. Mas em qualquer caso nada de definitivo se poderá saber antes de Setembro, ocasião em que se realiza em Londres a Conferência dos Primeiros-Ministros da Comunidade Britânica. Logo após, poderíamos nós começar talvez negociações sérias com o Mercado Comum.

Retomando as minhas observações sobre o que Rusk dissera, acrescentei que, em princípio, não tínhamos neste momento a intenção de mudar a nossa política em relação à NATO. Mas isto só era verdade na medida em que não viessem a verificar-se condições tais e uma atitude tal por parte dos membros da NATO que nos levassem a uma alteração. Quanto a outros campos, tínhamos de admitir que havia verdadeiras divergências de política entre os dois países, e a questão consistia em saber se era viável eliminá-las. Portugal teria o maior desejo em colaborar no esclarecimento dos problemas, embora quanto a certos aspectos não se visse com clareza como anular as divergências existentes. Talvez os americanos considerassem haver do nosso lado inflexibilidade ou rigidez. Estava hoje em moda ser-se acusado de imobilismo, sempre que se não satisfaz o que os outros desejam. Mas a verdade é que pelo nosso lado, e no que nos respeita, julgávamos que o mesmo poderíamos dizer da política americana, que se norteava por uma rigidez e uma total ausência de flexibilidade: todos os problemas eram super-simplificados por parte americana de modo a prescrever-se para todos uma única e idêntica solução. Eu ignorava em que medida poderia cobrir-se todo o campo das nossas relações. Todavia, uma condição prévia se impunha: a de que a rigidez da política americana se tornasse mais flexível. O secretário de Estado havia repetido palavras que o embaixador Elbrick já pronunciara em mais de uma vez: que os Estados Unidos não querem expulsar Portugal da África e que desejam até que mantenhamos laços com Angola e Moçambique. Não queremos duvidar da afirmação, que todavia não nos aparece corroborada por sucessivos passos da política americana. Mas a maior dificuldade reside em que os Estados Unidos sempre se esquivam a definir que «laços» ou «influência» têm em mente quando falam da presença portuguesa em África. Para nós, era essencial conhecer com rigor as ideias americanas a este respeito.

Declarou então o secretário de Estado que seria muito útil para os Estados Unidos se, por exemplo, o Governo português desse o seu parecer quanto à maneira como encara a situação no que respeita às províncias ultramarinas nos próximos dez anos.

Atalhei para dizer que, de novo, se nos punha uma questão em termos insusceptíveis de uma resposta concreta. Tudo o que se poderia validamente e honestamente dizer seria isto: que dentro de dez anos a situação — e os laços então existentes — será a que resultar da evolução natural, sob os pontos de vista sociológico e institucional, dos territórios e populações em causa. E era este um dos pontos em que queria sublinhar a rigidez da política americana: a permanente exigência de prazos, de limites e de objectivos preconcebidos. Achamos inconcebível que se pretenda que, honestamente, descrevamos qual será a situação daqui a cinco ou dez anos.

Neste ponto, o secretário de Estado notou que os Estados Unidos nunca haviam conduzido qualquer cruzada nas Nações Unidas no sentido acima; não foi a América que suscitou tais questões; os problemas, todavia, surgiram criados por outros; e os Estados Unidos tinham de os enfrentar. Tudo isto levantava problemas tão graves para Portugal como para os Estados Unidos, e por isso era muito desejável que trocássemos impressões sobre o assunto. A ideia de evolução com prazos marcados não partira da América. Desejariam, no entanto, conhecer a concepção portuguesa sobre o que poderá ser a evolução futura dos acontecimentos, designadamente como espera Portugal que venham a definir-se as relações entre a Metrópole e as principais províncias africanas.

Observei que, muito embora possa admitir-se que os Estados Unidos não hajam estimulado certos problemas, a realidade era que, quando o Governo americano assume determinada posição, está a emprestar enorme peso a políticas que afectam interesses vitais portugueses, e isso é feito sem que o Governo americano pareça levar em conta tais interesses.

Rusk comentou que, se os Estados Unidos não tivessem tomado parte no debate sobre Angola nas Nações Unidas, a situação a que Portugal tem hoje de fazer face seria, em sua opinião, muito pior. Mas há um factor encorajador: existem sinais de crescente moderação entre os africanos na ONU. O grupo da União Afro-Malgache e a Nigéria, por exemplo, reconhecem que a evolução exige tempo e que muitas coisas não acontecem da noite para o dia. Defender a moderação é o objectivo dos Estados Unidos na ONU. Por outro lado, o Governo americano tinha-se sentido encorajado com algumas passagens de recentes discursos do embaixador Theotónio Pereira nos Estados Unidos, e em que se encarava uma evolução natural em Angola. Se essas declarações traduzissem a política oficial, o facto poderia ser de grande utilidade para moderar os africanos na ONU. Mas de momento estava sobretudo interessado em que lhe dissesse qual a atitude portuguesa perante os problemas do desenvolvimento de Angola, e lembrou que os Estados Unidos haviam exprimido interesse em fornecer auxílio para a execução de projectos tanto em Angola como em Moçambique, mas não haviam recebido resposta, parecendo haver alguma relutância por parte de Portugal.

Esclareci que na verdade tinham sido elaborados planos pormenorizados de educação e de fomento rodoviário, e fora nossa intenção submetê-los aos Estados Unidos em Dezembro passado. Mas ao nosso conhecimento chegaram informações, que eu transmitiria ao embaixador Elbrick e que não haviam sido desmentidas, que fizeram nascer fortes suspeitas no nosso espírito, e por isso sustáramos a apresentação dos planos. E isso reconduzia-nos à questão básica: o problema de confiança. As nossas intenções, no entanto, eram as mesmas, e se se produzisse um desanuviamento da atmosfera poderia ressuscitar-se o problema, e até em bases mais amplas, pois o Governo português tem agora mais planos do que tinha então.

Rusk reiterou o desejo de cooperação por parte americana e, desviando depois o curso da conversa, observou que o ministro dos Estrangeiros do Brasil, Santiago Dantas, lhe dissera que tencionava falar comigo sobre o Ultramar português. Tinham-se realizado tais conversas? Informei o secretário de Estado de que nenhumas conversas ulteriores se haviam realizado. Dantas estivera muito ocupado com problemas de política interna brasileira, e compreensivelmente não pudera ainda dar seguimento às sugestões concretas que haviam sido formuladas do lado português.

Rusk tornou aos planos de educação. Sugeriu a possibilidade de contratarmos professores brasileiros, no caso de não os termos em número suficiente. Santiago Dantas mostrara interesse nessa ideia, e, como sabíamos, o Chanceler brasileiro era pessoa educada numa firme tradição de cultura lusitana, que queria ver continuada e perpetuada em África. Dantas, como brasileiro, pensava que seria lamentável se essa tradição se perdesse em Angola. Confirmei, por meu lado, as conversas anteriores com Santiago Dantas. Os problemas eram muito complexos, e sérios para os dois países, pelo que não era de admirar a demora numa reacção brasileira, além do mais, como já salientara, por razões de política interna brasileira. Mas, no que tocava à ideia dos professores, eu pensava que teríamos bastantes para as necessidades, tudo dependendo apenas do financiamento dos nossos planos.

O secretário de Estado observou que, em matéria de Ultramar português, o Brasil poderia desempenhar um papel importante nas Nações Unidas. Concordei em que assim era, e julgava mesmo que a posição portuguesa na ONU dependia, em última análise, da atitude conjunta do Brasil e dos Estados Unidos: se estes dois países tomassem posição diferente, toda a situação se modificaria por completo. Rusk observou que eu estava atribuindo demasiada força à influência dos Estados Unidos na ONU: não era tanta como eu julgava. Por exemplo: na 4.ª Comissão não conseguem obter o voto das Filipinas, e nem sequer podiam contar com o da Islândia na 1.ª Comissão. Comentei depois que as nações afro-asiáticas consideravam Portugal «uma noz difícil de rachar», e que se afigurava esperarem dos Estados Unidos ajuda para aquele fim. Nós não pensávamos que os afro-asiáticos nos «esmagassem», e era bom que o não conseguissem, porque muitos ficariam surpreendidos com os resultados. Quanto à influência dos Estados Unidos na ONU, eu não podia concordar com a tese de Rusk. Não queria levantar a questão de Goa, e só me referia ao assunto para sublinhar quanto uma intervenção diplomática americana poderia ter evitado uma agressão. Nós tínhamos em nosso poder o relatório do alto-comissário de um país da Comunidade Britânica, ao tempo em Nova-Delhi, donde sobressaía com clareza a frouxidão da intervenção americana. De outras fontes tínhamos recebido informes semelhantes. Rusk declarou não ter fundamento a acusação: o secretário de Estado conhecia o teor da mensagem do presidente Kennedy ao primeiro-ministro Nehru, e sabia quanto fora vigorosa. A acusação daquele Alto Comissário era pura especulação. Respondi que talvez assim fosse. Mas então havia que formular duas observações: por um lado, tínhamos de assentar em que a Índia não prestara a menor importância aos avisos e pedidos dos Estados Unidos; e, por outro lado, não se compreendia como o embaixador dos Estados Unidos na Índia, que decerto conhecia o teor rigoroso da mensagem do seu presidente, não se apercebera sequer do interesse do seu Governo em contrariar a agressão visto que o embaixador não perdia qualquer oportunidade de, em público, exprimir o seu desprezo por Portugal e sua política, conforme todo o corpo diplomático de Delhi testemunhou. Mas este era um aspecto sobre que não pretendia insistir. O facto importante, que não tínhamos vantagem em ocultar ou diminuir, era o da gravidade e seriedade da situação actual das relações luso-americanas. Em Atenas eu havia reclamado junto do secretário de Estado contra certos factos de que dera conhecimento, e que Rusk prometera investigar. Mas, para além desses factos, eu julgava que a situação actual se poderia resumir assim: saber se a política portuguesa é ou não útil ao Ocidente e se os Estados Unidos estão ou não interessados nos resultados finais dessa política. Portugal preocupa-se com os resultados de uma evolução a longo prazo; os Estados Unidos parecem apenas preocupados com resultados a curto prazo. No que nos diz respeito, estamos convictos de que a nossa política é melhor e mais fundamentada, e os desastres sucessivos do Ocidente não se afiguram dar razão ao ponto de vista contrário.

Rusk respondeu que lhe parecia preferível tentar antes avaliar-se o que é provável que venha a acontecer. Os Estados Unidos têm consciência de que estes problemas não podem resolver-se em 24 horas. Dentro daquele pensamento, não havia dúvida de que uma das mais importantes divergências respeitava à estimativa da situação em Angola: há uma diferença entre o que os Estados Unidos pensam e o que Portugal pensa que possa acontecer em Angola na próxima década. Os Estados Unidos julgam que seria da maior utilidade para Portugal se pudesse dizer aos seus críticos: por que não perguntam aos Angolanos o que pensam da situação?

Observei que se o problema fosse posto nesses termos simples, então poderíamos tratá-lo como o Sr. Nehru tem tratado o de Cachemira: tem havido numerosas eleições, e estas bastam para justificar a já existente autodeterminação. Mas a questão era outra, e mais grave: se nós usássemos tais métodos, ninguém acreditaria nos resultados, muito embora os mesmos métodos, quando empregues por outros, sejam bem aceites, até pelos Estados Unidos. O problema, por conseguinte, consistia em saber como convencer o Mundo de que os métodos portugueses são tão bons e válidos como quaisquer outros e que os nossos objectivos são tão honestos e válidos como aqueles que, em teoria, se apregoam na ONU. Tomando de novo Goa como exemplo: era do conhecimento geral que os Goeses não se consideram «libertados» na situação actual; mas tem isso porventura algures influência na atitude dos países mais responsáveis?

Rusk observou ser difícil conhecer a verdadeira situação, mas que, em qualquer caso, a causa de Portugal teria sido muito reforçada se nós tivéssemos podido dizer que os Goeses é que deveriam ter sido consultados.

Referindo-me de novo a Angola, e a propósito da alusão à necessidade de ser «ouvida» uma voz angolana, disse ao secretário de Estado que nas últimas eleições para as regedorias e municipalidades haviam sido eleitos 25% de angolanos negros, e esta percentagem certamente aumentaria em futuras eleições. Estes resultados eram mais do que apreciáveis, e o único mal parecia residir na nossa falta de talento para convencer o Mundo da verdadeira realidade, que era esta: Angola e Moçambique tinham, de facto, muito maior autonomia do que muitos dos novos países supostamente independentes.

Rusk perguntou então que importância atribuía Portugal ao relatório da OIT sobre Angola e Moçambique. Disse-lhe que lhe atribuíamos grande importância, porque o documento viera destruir uma calúnia, e os resultados já se haviam feito sentir na última conferência do trabalho, em Genebra, em que beneficiáramos duma atmosfera totalmente diversa das precedentes. Além disso, verificava-se agora que déramos total cooperação à OIT, e ficara-se sabendo, no seio da organização, que se não podia atacar Portugal com impunidade. A Libéria, por exemplo, encontrava-se numa situação difícil, porque a OIT, em seguimento da queixa de Portugal contra aquele país, pretendia investigar as condições ali existentes; mas os liberianos pretendiam furtar-se, com o pretexto de não existirem condições que permitissem aos investigadores alojar-se e deslocar-se. Por outro lado, e no prosseguimento da mesma política, o Governo português acabava de pedir à OMS um estudo sobre as condições sanitárias em Angola, Moçambique e Guiné, e igual solicitação íamos dirigir a outras agências especializadas. Tudo isto poderia ser útil nas Nações Unidas — e era de esperar que, perante es acusações destes, os Estados Unidos pudessem dizer que dispunham de informações oficiais e imparciais sobre os territórios portugueses, que contrariavam o que se afirmava na Assembleia Geral. E isto levava-nos a outro problema: o da cooperação com os vários Comités da ONU. Verificáramos que a mesma era impossível. Tínhamos admitido como simples hipótese a eventual visita de alguns membros do Comité dos Sete a Angola, a título privado. Logo nos apercebemos que recusavam, e só aceitavam desde que se deslocassem oficialmente. Também já concluíramos que não podíamos confiar no Comité Salamanca: não existia para relatar a verdade, mas para agradar à maioria.

Rusk observou que o Comité Salamanca era de todos o mais moderado, e que talvez fosse do nosso interesse dar-lhe alguma colaboração. Mas tinha meditado cuidadosamente em tudo isso. E ocorrera-lhe uma fórmula muito usada ao tempo da Sociedade das Nações a de um relator internacional. Pensava que se uma figura mundial responsável fosse encarregada de investigar um dado problema, o seu relatório teria provavelmente muito peso e mais aceitação do que o de um Comité Misto, eivado dos pontos de vista subjectivos dos seus vários membros. Que pensava eu desta ideia?

Exprimi o meu interesse pela ideia e o parecer de que a mesma não deveria ser posta de parte sem um exame atento, mas antes disso seria difícil manifestar um ponto de vista firme. Como exemplo de um relator mencionei o príncipe Wan da Tailândia1, Rusk disse que pensava antes numa pessoa como Eugene Black, do Banco Mundial.

A conversa foi suspensa neste ponto. Eram 0h.15.

Recomeçou a conversa hoje, às 10h.05, no Ministério.

O secretário de Estado retomou desde logo a ideia do relator internacional. Um relatório feito por este, juntamente com os estudos ou investigações da OIT, OMS e FAO, constituiria um conjunto de documentos construtivos que poderiam ser utilizados com vantagens nas Nações Unidas. E isto levava-o a um outro problema. Em sua opinião alguma coisa haveria que fazer quanto às Nações Unidas, cuja Assembleia Geral se tornara tão vasta que não se podia já controlar. Estavam pensando em alterações. Imaginavam o estabelecimento de uma espécie de Conselho Executivo, talvez de 18 membros, que tomasse decisões, enquanto à Assembleia ficaria apenas a faculdade de debater os problemas que aquele lhe submetesse. Tinham chegado à conclusão de que as forças que dirigiam à Assembleia não correspondiam às forças reais no mundo. Outra hipótese seria justamente a de adoptar a prática da Sociedade das Nações, e de entregar a relatores especiais o estudo de assuntos em que os debates se revelem improfícuos. Para tais casos, tinham em mente antigos presidentes da Assembleia ou pessoas como o Sr. Trigve Lee2. No que nos respeitava, afigurava-se-lhe que se deveria primeiramente esboçar a ideia perante a Assembleia, sem se mencionar qualquer nome. Mostrei o interesse que poderia oferecer a ideia, que talvez provasse ser construtiva e útil, acentuando todavia a necessidade de estudo e reflexão mais aprofundadas. Rusk comentou que uma tal proposta constituiria um «test»: se recusada pela Assembleia, tiraríamos benefício político dessa recusa.

Quanto ao problema geral da reforma das Nações Unidas, Rusk disse que, na impossibilidade de alargamento do Conselho de Segurança mediante emendas à Carta, o recurso seria devolver à Assembleia a responsabilidade desse alargamento. Se se conseguisse transformar o Conselho de Segurança em «órgão executivo», passariam para este os poderes da Assembleia, e àquele caberia decidir quais os pontos a discutir, a orientação do debate com ou sem projectos de resolução, etc. A nomeação de relatores caber-lhe-ia igualmente. Todos estes assuntos estavam sendo estudados do lado americano.

Observei então que, no caso de ser nomeado um relator para as coisas portuguesas, o relatório deste só poderia ser ou desfavorável ou favorável. Na primeira hipótese, e com base no documento, seriam adoptadas resoluções hostis, e caíamos de novo no problema da jurisdição da ONU. Na hipótese de um relatório favorável, era quase certo que seria rejeitado pela maioria da Assembleia. Em tal caso, estavam os Estados Unidos preparados para defender o relatório e votar contra as resoluções que a Assembleia apesar de tudo quisesse adoptar?

Rusk não respondeu, e disse que gostaria de conhecer exactamente qual a nossa posição em face da generalidade dos organismos internacionais: em que medida neles colaborávamos e como acatávamos as suas observações.

Esclareci que Portugal era membro de todas as agências especializadas, salvo a UNESCO3; a todas dávamos colaboração sincera; e não repudiávamos críticas objectivas e bem intencionadas, como era prova evidente o seguimento que tínhamos dado e estávamos dando ao relatório da OIT. Mas eu pretendia também conhecer a opinião do secretário de Estado sobre a evolução africana recente. Parecia-me que na generalidade dos novos países não se tinha verificado qualquer progresso. Afiguravam-se-me completamente perdidas as vastas somas investidas ou dadas a esses países. E julgava saber que alguns dos próprios chefes africanos começavam a reconhecer essa situação. Não comentou o secretário de Estado este aspecto, limitando-se a referir a Universidade de Abadan como exemplo de progresso cultural, ao que contestei tratar-se de uma instituição com mais de 20 anos de existência, o que decerto explicava alguma coisa.

Tornando à questão de Angola, Rusk perguntou como encararíamos a hipótese de uma autêntica voz dos angolanos se apresentar a falar em nome de Angola, distinta da do Governo português, embora trabalhando com este para o desenvolvimento comum. Respondi que se o Secretário de Estado tinha em mente uma delegação angolana a comparecer separadamente perante organismos internacionais eu não via como isso seria possível. Mas, se se tratava de uma «voz angolana» no quadro da Nação Portuguesa, então haveríamos de concordar que a mesma já existia. Que outra coisa eram os regedores, e as municipalidades, e os membros do Conselho Legislativo, e os deputados angolanos na Assembleia Nacional? Tudo isto era muito mais representativo de Angola do que o eram, em relação aos seus respectivos países, alguns dos delegados, que víamos na ONU a proferir discursos demagógicos.

Rusk disse então que lhe parecia existirem três elementos básicos em que poderíamos assentar uma defesa da nossa política: a) oportunidades iguais, para todos, de desenvolvimento económico, social e educativo; b) inexistência comprovada de descriminação racial; c) afirmação de que os Angolanos têm, na verdade, ensejo de fazer ouvir a sua voz por intermédio dos seus representantes eleitos. Aceitando estes três pontos, parecia-lhe que a faixa de separação entre a nossa política e o seu ponto de vista era muito pequena e estreita, embora pudesse ser profunda.

Perguntei ao Secretário de Estado por que razão estava tão preocupado com Angola, e só com Angola? Por que não com Moçambique? Replicou: aquele é o problema actual, e que nos foi imposto contra vontade. Seguidamente, Rusk formulou algumas perguntas concretas: Quantos refugiados existem ainda no Congo? São refugiados políticos? São recuperáveis? Prestei os esclarecimentos devidos. O secretário de Estado falou de novo nos discursos do embaixador Theotónio Pereira e disse que se as opiniões expressas assumissem o carácter de declarações formais e oficiais do Governo português, então seria outra a posição, e poder-se-ia dizer que quase não existiria qualquer «faixa de separação» entre os pontos de vista dos dois países. Expliquei a Rusk o alcance das frases do Dr. Theotónio Pereira, e sublinhei que a grande, a considerável diferença entre nós residia neste facto: nós entregávamos tudo à evolução natural das sociedades e das instituições; os americanos queriam que procedêssemos com datas, prazos, e objectivos prédeterminados, como se fosse viável planear tecnicamente a evolução de uma sociedade humana. Rusk disse que não tinham especialmente no pensamento a «independência»: esta devia até pôr-se de parte, para se falar de preferência em «autodeterminação»: porque a verdade era que uma autodeterminação entendida como devendo necessariamente significar independência era uma noção preconcebida e portanto falseada. Concordei inteiramente, mas exprimi dúvidas de que a ONU, na sua forma actual, aceitasse um tal critério.

O secretário de Estado insistiu então, com ênfase, na necessidade de nos entendermos. «Somos amigos, e temos de colaborar como amigos». Não fiz comentários. E continuou: Sei que há ressentimentos portugueses que já vêm de longe. O caso do «Santa Maria», por exemplo. Eu disse-lhe que, já que falava nisso, não lhe ocultava a nossa mágoa pela atitude do almirante Dennison. Tinha sido uma questão de táctica, com vista a salvar a vida dos 44 passageiros americanos. Mas eu perguntei-lhe se também fora por táctica que o embaixador dos Estados Unidos no Rio de Janeiro enviara uma nota ao Itamaraty pedindo que o «Santa Maria» fosse de novo autorizado a fazer-se ao mar. Rusk mostrou surpresa, e disse não se recordar com nitidez de tal nota. E tornou a reiterar a amizade dos Estados Unidos por Portugal e o desejo de que nos «mantenhamos» em África.

Aproximava-se a hora em que o secretário de Estado deveria avistar-se com o presidente do Conselho. E então, como que para resumir as conversas, Rusk sublinhou a necessidade urgente, durante as próximas semanas, de proceder-se a uma intensa troca de pontos de vista. Havia que seriar os problemas em pormenor, identificá-los bem concretamente, e proceder por eliminações sucessivas. Quanto a alguns, poderíamos estar em face de simples equívocos; outros, devidamente analisados, poderiam ser o resultado de meras diferenças de terminologia; ainda quanto a outros, poderia acontecer que os Estados Unidos tivessem culpas; e nos que se revelassem constituir verdadeiras divergências haveria que estudar progressivamente a maneira de os resolver.

Disse ao secretário de Estado que nenhuma objecção ou dificuldade via na adopção do método proposto. Mas no meu espírito iam sempre subsistindo dúvidas, bem contra minha vontade. Ainda há dias, numa reunião informal mas secreta, efectuada entre ingleses e americanos, estes últimos afirmaram peremptoriamente que os Portugueses tinham de sair de África, sem a menor justificação. Estavam presentes altos funcionários do Departamento de Estado, e nem um único levantara a voz em nossa defesa, que apenas fora feita, do lado americano, por um jornalista que visitara Angola. Rusk mostrou-se perplexo, e afirmou que não sabia de que reunião se tratava. Todavia queria assegurar-me mais uma vez que os Estados Unidos não tinham interesses em África, que eram amigos de Portugal, que desejavam mantivéssemos laços com África, e que para o efeito estavam a oferecer a sua cooperação económica.

Terminou a conversa cerca das 11h.35.

(…)

Depois do almoço, Rusk quis de novo conversar. Voltou a falar dos nossos planos, da cooperação americana, da necessidade imperiosa de esclarecer as relações entre os dois países.

Concordei com Rusk, sublinhando apenas que a maior dificuldade estava em que do lado americano se fugia sempre a compromissos definidos e precisos. Mas só via vantagem no esforço de clarificação a que aludia. Kohler, que se encontrava perto, disse que pelo método proposto decerto se eliminariam as «tolas acusações» que tínhamos formulado. Como a palavra usada em inglês «silly» tem um sentido pejorativo, reagi, e signifiquei a Kohler que teria sido preferível não a ter usado. Kohler não ocultou o seu embaraço, e retirou a palavra.

Rusk disse então que, segundo o método que propusera, poderiam ser abordados todos os problemas pendentes entre os dois países. «O dos Açores, por exemplo» — acrescentou. Não mostrei qualquer reacção, e limitei-me a exprimir concordância genérica quanto ao método de examinar os problemas.

O secretário de Estado perguntou depois, com vivacidade:

«Mas vocês estão interessados nas boas relações luso-americanas, não estão?»

Respondi-lhe:

«Decerto. Temos o maior interesse. Com uma condição apenas: que a excelência dessas relações não se produza à custa da nossa destruição».

Depois de várias frases sem significado, perguntei a Rusk se seguia directamente de Lisboa para Washington. Disse que pararia nas Lages, e acrescentou a sorrir: — «E vou visitar a base com um redobrado interesse». E como em resultado de um pensamento suplementar, ajuntou: «Se por acaso você não tem qualquer objecção!»*. Repliquei, também a sorrir:

«Até ao dia 31 de Dezembro de 1962 não há objecção!»

Eram cerca de 15h.30, e saímos para o aeroporto.


  1. Figura eminente na política do seu país e antigo presidente da Assembleia Geral da ONU

  2. Antigo secretário-geral da ONU. Norueguês de nacionalidade.

  3. Na altura. Dois ou três anos depois, Portugal foi admitido.

publicado aos